Transporte por moto: Decisão que libera transporte por moto em São Paulo força o País a enfrentar o desafio da regulamentação. E as plataformas a aceitá-la
Se a regulamentação de fato sair na maior capital do País, poderá forçar prefeitos a sair da omissão em suas cidades e criar regras para o moto app

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Sob a ótica da segurança viária e da luta permanente para salvar vidas no trânsito brasileiro - a maioria delas de ocupantes de motocicletas, vale destacar -, infelizmente a Justiça voltou a liberar os aplicativos de transporte remunerado de passageiros com motos em São Paulo, como muitos já devem saber. A notícia é desanimadora para quem socorre as vítimas, educa condutores, planeja ou opera a mobilidade urbana coletiva nas cidades. É fato e quem está nesse grupo vai concordar.
Mas há lados positivos na determinação dos magistrados paulistas - que nunca sonharam em se arriscar ou ter um filho ou filha se arriscando a andar na garupa de um Uber Moto ou 99 Moto, também vale destacar: a decisão judicial, se mantida, vai forçar o Brasil a enfrentar a desafiante regulamentação do serviço. E, o que mais será desafiador: fazer as gigantes da mobilidade - leia-se Uber e 99 - a aceitar as regras.
SÃO PAULO É VITRINE PARA O PAÍS E PODERÁ FORÇA PREFEITOS A SAIR DA OMISSÃO
Ao mesmo tempo, as regras que vierem a ser definidas pela maior e mais rica capital brasileira, que dita leis, tendências e costumes no País, será espelho para o Brasil. Poderá forçar os prefeitos das quase quatro mil cidades brasileiras onde o Uber e 99 Moto operam sem nenhuma ou pontuais regulamentações a sair da cômoda e omissa posição de não fazer nada.
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Quem sabe? Outra possibilidade é que, a partir da decisão em São Paulo, as discussões que já começaram no Congresso Nacional para regulamentar os moto apps avancem e definam padrões de segurança mínimos para o transporte remunerado de pessoas em motos, inerentemente perigoso.
GRANDE DESAFIO SERÁ CONVENCER AS PLATAFORMAS A ACEITAR REGRAS E EPIS PARA CONDUTORES E PASSAGEIROS
Mas, sem dúvida, o maior desafio será mesmo convencer a Uber e a 99 a aceitar as regras que, no caso de uso de motocicletas, terão que ser muito mais rigorosas do que a regulamentação do serviço com carros - questionada pelas mesmas plataformas em diversas cidades, inclusive nas grandes capitais como São Paulo e até mesmo o Recife.
Para quem não sabe, na capital pernambucana - também por decisão da Justiça de Pernambuco (TJPE) - a prefeitura está proibida de fiscalizar a operação de transporte de pessoas pelo serviço de Uber e 99 com carros. Só pode aplicar as regras de circulação, condutor e veículos previstas no Código de Trânsito Brasileiro (CTB).
No caso do transporte remunerado com motos a situação é bem mais grave porque estamos falando de EPIs (equipamentos de proteção individual), como capacetes corretos, coletes, joelheiras, idade máxima para as motos cadastradas e, principalmente, a imposição de cilindradas mínimas para uso no serviço. Além de um controle maior sobre perfis falsos e jovens conduzindo motos sem habilitação.
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É esperado que as plataformas reajam e, assim como fizeram com os carros em todo o Brasil, apelem à Justiça brasileira pelos seus direitos de promover a economia do País. E toda aquela conversa de livre iniciativa e livre concorrência.
Esse, sim, será o grande desafio numa nação que promove a morte evitável de 34 mil pessoas no trânsito por ano, dos quais pelo menos 14 mil são condutores e, depois do Uber e 99 Moto, também passageiros das motocicletas.
ENTENDA A DECISÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SP
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) declarou inconstitucional o decreto da prefeitura que proibia o transporte remunerado de passageiros por motocicleta na capital. Em decisão unânime nesta quarta-feira (3), o Órgão Especial da corte entendeu que um município não pode legislar sobre trânsito para proibir uma modalidade de transporte, uma vez que essa competência é do governo federal.
A decisão, no entanto, só entrará em vigor 90 dias após a publicação do acórdão, prazo concedido para que a Prefeitura de São Paulo regulamente o serviço. Ainda cabe recurso.
A proibição foi instituída em janeiro de 2023 pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB), por meio do Decreto Municipal 62.144, que suspendeu a atividade. Na época, um grupo de trabalho da prefeitura concluiu que o modal poderia elevar o número de sinistros de trânsito na cidade. A norma foi questionada judicialmente pela Confederação Nacional de Serviços (CNS) em uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI), que resultou na derrubada do decreto.
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ARGUMENTOS DO JULGAMENTO
O relator do caso, desembargador Ricardo Dip, baseou seu voto no fato de que a legislação federal não proíbe o serviço e que o Supremo Tribunal Federal (STF) já se posicionou sobre a competência federal para legislar sobre o tema. "Os municípios não podem inovar no trânsito e transporte impedindo a utilização de motocicletas para o transporte individual e remunerado de passageiros [...] se a legislação federal não possui proibição similar", afirmou Dip. Ele acrescentou que o decreto também feria os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência.
Na defesa da liberação, o advogado da CNS, Ricardo Oliveira Godoi, argumentou que a proibição "não elimina a demanda" e, ao contrário, "favorece a clandestinidade". Ele ressaltou que o serviço beneficia a população periférica com viagens mais baratas e serve como fonte de renda para os motociclistas. Godoi também destacou o "ecossistema de segurança" oferecido pelas plataformas, que inclui checagem de antecedentes, monitoramento por GPS e um seguro de até R$ 100 mil para quedas e colisões.
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Por sua vez, a procuradora-geral do município, Luciana Nardi, defendeu a autonomia da cidade para vetar o serviço, alegando que as normas federais existentes se aplicam a carros, não a motos. Ela enfatizou os altos índices de sinistros de trânsito na capital e a singularidade do trânsito paulistano. "As cidades possuem realidades distintas, não tem como comparar o trânsito de São Paulo com o de nenhuma outra cidade no País", declarou.
LEI ESTADUAL CRIADA POR TARCÍSIO DE FREITAS FOI USADA COMO ARGUMENTO
A decisão ocorre em um cenário complexo. Em junho, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) sancionou uma lei estadual que condiciona a operação de mototáxi e motoapps à "autorização e regulamentação dos municípios". A lei, inclusive, foi citada pelo desembargador relator Ricardo Dip, que usou a legislação como exemplo para fundamentar sua decisão porque ela determina que o serviço de mototáxi só pode ser prestado mediante autorização e regulamentação pelas prefeituras dos municípios de São Paulo.
Aprovada com articulação do prefeito Nunes, a lei estabelece exigências para a prestação do serviço, como:
- CNH na categoria A com autorização para atividade remunerada e certidão de antecedentes criminais para o motociclista.
- Inscrição do condutor como contribuinte no INSS.
- Recolhimento de Imposto Sobre Serviço (ISS) e oferta de seguro de acidentes pessoais pelas plataformas de aplicativo.
Embora a sanção desta lei tenha adiado o julgamento, o TJSP considerou que ela não impedia a análise do decreto municipal. A exploração dos serviços sem o cumprimento das regras previstas na lei estadual será considerada "transporte ilegal de passageiros", com fiscalização e multas a serem detalhadas por cada prefeitura.