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Transporte por moto: entidades médicas e de segurança viária são unânimes em defender a proibição do uso de motos para o transporte de passageiros

O entendimento é de que a popularização do serviço não pode ser razão para ignorar o aumento alarmante de mutilados, feridos e mortos no País

Por Roberta Soares Publicado em 22/06/2025 às 8:00

Entidades ligadas à saúde, à segurança viária e ao transporte público são unânimes em defender a proibição dos serviços de transporte de passageiros por aplicativo com motos, como Uber e 99 Moto, alertando para as graves consequências à saúde pública e à Previdência Social.

O entendimento é de que a popularização desses serviços, impulsionada pela entrada das plataformas em quase quatro mil cidades brasileiras - e na grande maioria das capitais -, não pode ser razão para ignorar o aumento alarmante de mutilados, feridos e mortos no País.

Uma dessas entidades é a Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), que vem alertando para a precariedade do serviço de aplicativos de transporte com motos, enquanto governos e plataformas se omitem em suas responsabilidades. “Nem tudo que o cidadão deseja é bom para a sociedade. A precariedade é tamanha. A quietude de governos é tamanha. O cinismo das plataformas é tamanho. E o custo social é tamanho”, alerta Luiz Carlos Néspoli, superintendente da ANTP.

Na visão do especialista, dada a complexidade do problema, o enfrentamento só terá efeito se houver conjugação de esforços da União (Secretaria Nacional de Trânsito - Senatran), dos Estados (Detrans), dos municípios, fabricantes, e empresas que utilizam este modo de transporte como negócio (delivery e táxi).

“Há muito pouco o que se fazer no campo da engenharia de tráfego. No campo da fiscalização, estamos enxugando gelo. No campo da educação, o que fazer em um sistema sem regras, sem obediência, sem valorização das normas? A solução passa por um envolvimento efetivo de todos os atores, talvez até com um processo subsidiado de regularização porque muitas dessas motos não fazem o licenciamento anual e muitos condutores estão com a CNH cassada ou suspensa. Por isso é necessário envolver a Senatran e os Detrans”, orienta.

Esse é mais um recorte da série de reportagens Transporte por moto: O Brasil precisa enfrentar, que a Coluna Mobilidade do JC está apresentando para discutir a necessidade de o Brasil enfrentar a criação de regras para o transporte de passageiros com motos.

O ALERTA DOS MÉDICOS PARA OS CUSTOS SOCIAIS DA LETALIDADE

JC/IMAGEM
Passageiros andam soltos nas motos e até manuseando celulares, colocando em risco suas vidas e a dos motoqueiros do serviço de motoapp - JC/IMAGEM

Especialistas e associações médicas, como a Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet) e a Associação Paulista de Medicina (APM), também se posicionaram veementemente contra a liberação e regulamentação do mototáxi digital, temendo um efeito catastrófico no sistema público de saúde.

A motocicleta, que já responde por 70% das mortes e mutilações no trânsito brasileiro, tem sua participação ampliada com a inclusão do passageiro, que geralmente não tem experiência como "co-piloto". A Abramet destaca que as motos, com 28% da frota nacional, estão relacionadas a aproximadamente 55% das internações nos hospitais do SUS, sendo o modal mais perigoso para deslocamentos, especialmente com passageiros.

Alerta que a presença do passageiro altera o centro de gravidade do veículo, dificultando manobras e impactando na frenagem, aumentando significativamente o risco de quedas e colisões. O perigo para o passageiro é ainda maior por estar exposto sem o domínio da direção, frequentemente sendo pego de surpresa em sinistros de trânsito (não é mais acidente de trânsito que se define, segundo o CTB e a ABNT)

Como exemplo, cita a capital mineira Belo Horizonte, que registrou um aumento de 22% nas internações de leitos nos primeiros seis meses de operação do serviço. E lembra que o custo social é imenso: entre 2007 e 2018, mortos e feridos no trânsito custaram, em média, R$ 136 bilhões por ano à sociedade brasileira, valor um pouco menor que o orçamento total do Ministério da Saúde em 2023.

O PERIGO INERENTE DA MOTOCICLETA

MISTER SHADOW/AE
O JC está discutindo a necessidade de o País enfrentar a criação de regras para o transporte de passageiros com motos na série de reportagens Transporte por moto: O Brasil precisa enfrentar - MISTER SHADOW/AE
MARIO ÂNGELO/AE
Dada a complexidade do problema, o enfrentamento só terá efeito se houver conjugação de esforços da União, dos Estados, dos municípios, fabricantes, e empresas que utilizam o modo de transporte como negócio - MARIO ÂNGELO/AE

A Iniciativa Bloomberg para a Segurança Viária Global (BIGRS) já afirmou e reafirmou que a motocicleta não se encaixa no modelo de Sistema Seguro, que busca evitar mortes e lesões graves no trânsito. Pontua que o conceito, que tem a preservação da vida como prioridade e a responsabilidade compartilhada, é desafiado pela vulnerabilidade extrema das motocicletas.

“A moto não é segura, não existe uma forma segura de circular com ela porque as motocicletas expõem seus ocupantes completamente, diferentemente dos carros que os protegem, resultando em um número desproporcional de lesões graves e fatais”, afirma Diogo Lemos, coordenador executivo da Iniciativa Bloomberg em São Paulo, em entrevista ao JC.

Diogo Lemos lembra que, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o corpo humano não suporta impactos acima de 30 km/h sem consequências graves, e colisões acima dessa velocidade são frequentemente fatais para motociclistas, cuja única proteção é o capacete. “Para que esses veículos se enquadrem, seriam necessárias políticas que promovam a readequação de velocidade, infraestrutura apropriada e fiscalização rigorosa”, destaca.

A URGÊNCIA DE FORTALECER O TRANSPORTE PÚBLICO E A RESPONSABILIZAÇÃO DAS PLATAFORMAS

BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM
Dados do IBGE refletem a explosão no Norte/Nordeste do serviço de transporte de passageiros com motos e por aplicativo, além do delivery - BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM

O entendimento das entidades é de que a solução para a mobilidade urbana não passa pela aceitação do Uber e 99 Moto, mas sim pelo investimento massivo em um transporte público de qualidade e seguro. Especialistas defendem a melhoria do transporte público, com ampliação de corredores e faixas exclusivas para ônibus, expansão da rede metroviária, e linhas capilares que atendam às periferias, resolvendo o problema da "primeira ou última milha" onde o transporte público não chega.

Diogo Lemos argumenta que a discussão sobre o Uber e 99 Moto precisa ser feita em nível nacional e que, se houver regulamentação, ela deve ser "extremamente complexa para as plataformas, como forma de reduzir mortes e ferimentos".

A Abramet defende que os aplicativos de transporte devem ser responsabilizados pelas vítimas de quedas e colisões, sejam condutores ou passageiros. Argumenta que, se os lucros do serviço são concentrados nas empresas, os prejuízos – que recaem sobre o Sistema Único de Saúde (SUS) e a Previdência Social – devem ser compartilhados.

A luta por iniciativas de capacitação profissional e políticas de emprego que ofereçam segurança e estabilidade, incentivando o emprego formal no setor de transporte público, é crucial para não lançar jovens em trabalhos que colocam suas vidas e as dos passageiros em risco.

DESCONSTRUINDO OS ARGUMENTOS DE QUE AS MOTOS SÃO SEGURAS PARA O TRANSPORTE DE PASSAGEIROS

Jurandir Fernandes, vice-presidente honorário da UITP (Associação Internacional de Transportes Públicos), desconstruiu alguns dos argumentos favoráveis ao Uber e 99 Moto.

“Embora pareça barato, os custos ocultos de segurança e saúde pública são imensuráveis. Sinistros com motos são mais frequentes e graves, gerando perdas familiares e altos custos ao SUS, além de impactos à economia nacional pela perda de jovens trabalhadores”, afirma.

“O ganho de tempo tende a diminuir com investimentos urgentes no transporte público, e o menor ganho de tempo não compensa o risco e o desconforto inerentes a andar na garupa de uma moto. Além disso, a natureza do transporte em motocicletas é, inerentemente, mais perigosa e desconfortável. A probabilidade de quedas e colisões é maior, e as consequências são mais graves, pois as plataformas não abordam os riscos e intempéries climáticas. O transporte coletivo é anos-luz mais seguro, diz.

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