Transporte por moto: O Brasil precisa enfrentar | Notícia

Transporte por moto: Chegou a hora de enfrentar. Não dá mais para esperar

Em série de reportagens, o JC discute a necessidade de o Brasil enfrentar a criação de regras para o transporte de passageiros com motos

Por Roberta Soares Publicado em 15/06/2025 às 7:20 | Atualizado em 17/06/2025 às 13:10

O estrago dos aplicativos de transporte de passageiros com motocicletas, como o Uber e o 99 Moto, está posto. E no Brasil inteiro. Pouquíssimas cidades de médio e grande porte do País, principalmente capitais, não estão sofrendo com o aumento dos sinistros de trânsito (não é mais acidente de trânsito, segundo o CTB e a ABNT) envolvendo ocupantes de motos.

De fato, até hoje - desde que o serviço de motoapp começou, ainda em dezembro de 2021, em Aracaju, capital do Estado nordestino de Sergipe, nunca se teve um levantamento estatístico que associe as vítimas ao uso dos aplicativos. Sejam condutores ou passageiros.

Em Pernambuco, o Ministério Público do Trabalho (MPT) tem trabalhado articulações para que as unidades de saúde façam a coleta dos dados no momento do socorro ou da internação. Mas ainda leva tempo para que os primeiros resultados sejam analisados e divulgados.

Enquanto isso, basta observar as ruas, avenidas e até mesmo rodovias federais que cortam áreas metropolitanas e urbanas das cidades para perceber a explosão das motocicletas nos deslocamentos da população. E, agora, diferentemente do crescimento dos sinistros de trânsito com motos de 15/20 anos atrás, com um novo ator: o passageiro na garupa, em sua maioria mulheres - o que caracteriza o uso do serviço de Uber e 99 Moto.

Passou da hora de o Brasil tentar, ao menos, mitigar os danos, já que a proibição é desafio que poucos gestores públicos tiveram coragem de enfrentar.

RESTRIÇÃO E SEGURANÇA COMO ESTRATÉGIAS DE AO MENOS REDUZIR OS DANOS

JOSE PATRICIO/AE
Mortes e mutilações de ocupantes de motocicletas explodem no País com o crescimento vertiginoso dos aplicativos de transporte com motos - JOSE PATRICIO/AE

A maior cidade brasileira - São Paulo - e a única que teve coragem de enfrentar administrativa e politicamente a liberação do Uber e 99 Moto no País - foi a primeira capital a apresentar oficialmente uma proposta de regulamentação do serviço. Apesar do uso político da medida - elaborada pelos partidos de oposição à gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) na Câmara de Vereadores de São Paulo -, o texto busca reduzir o risco tanto para quem conduz como para quem usa o motoapp como passageiro.

A proposta restringe a circulação do Uber e 99 Moto devido ao perigo do serviço e cobra equipamentos de segurança para os ocupantes das motos - condutores e passageiros. Na prática, o serviço não poderá ser oferecido no centro expandido nem em rodovias e corredores viários de tráfego intenso.

Além disso, prevê o compartilhamento de dados das plataformas com a gestão pública. Também cobra a adoção de alertas de velocidade - que a empresa 99 já adotou, por exemplo, em suas viagens - e que as ocorrências relevantes de sinistros de trânsito sejam informadas em até 72 horas. Por isso, é certo que a proposta deverá ser questionada judicialmente pelas plataformas, caso avance.

CONFIRA OS PRINCIPAIS PONTOS DA PROPOSTA DE REGULAMENTAÇÃO

BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM
Passageiros do serviço de Uber e 99 Moto estão andando soltos na garupa das motos, com capacetes inadequados, dedos do pé expostos e até manuseando celulares - BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM

Principais Pontos da Proposta:

Perímetros de Atuação: A proposta sugere a proibição da atuação de motofretistas de aplicativos no centro expandido e em vias estruturais da cidade, visando otimizar a circulação e a segurança.

Adoção Gradativa e Condições de Trabalho:

Valores Mínimos: Estabelecimento de um valor mínimo para as viagens, assegurando uma remuneração justa aos condutores.

Horas Máximas: Definição de um limite máximo de horas trabalhadas, combatendo a exaustão e protegendo a saúde do motoqueiro.

Dados Gratuitos: Exigência de que as empresas forneçam dados relevantes gratuitamente para fiscalização e estudos.

Segurança e Suporte ao Trabalhador:

EPIs: As empresas serão responsáveis por fornecer os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) necessários para os condutores.

Seguro de Vida: Garantia de seguro de vida para os condutores e passageiros.

Seguro Veicular Coparticipativo: Criação de um modelo de seguro veicular com coparticipação, facilitando o acesso e a proteção.

Alertas de Velocidade: Implementação de alertas de velocidade nos aplicativos para promover a condução segura.

Alertas de Ocorrências: As empresas deverão alertar sobre ocorrências relevantes em até 72 horas.

Participação e Apoio:

CEMUV e Trabalhador: Fortalecimento da participação dos trabalhadores no debate e nas decisões do Conselho Municipal de Uso do Viário (CEMUV).

Pontos de Apoio: Criação de pontos de apoio para os motofretistas, oferecendo estrutura e suporte durante a jornada de trabalho.

Confira o resumo em áudio da primeira reportagem da série Transporte por moto: O Brasil precisa enfrentar:

CIDADES BRASILEIRAS COMEÇAM A ANALISAR REGULAMENTAÇÕES, MAS INICIATIVAS AINDA SÃO POUCAS

Alf Ribeiro/AE
Em série de reportagens, o JC discute a necessidade de o Brasil enfrentar a criação de regras para o transporte de passageiros com motos - Alf Ribeiro/AE

Outras capitais brasileiras também começaram a estudar a regulamentação, num claro reflexo de que não há mais volta no caminho que o País optou. Mas as poucas que começaram a estudar as possibilidade ainda não avançaram numa proposta formal. Goiânia, a capital de Goiás, seria uma delas. Estudos têm sido conduzidos pela Secretaria Municipal de Engenharia de Trânsito (SET) e pela Procuradoria-Geral do Município (PGM), mas sem previsão para anúncio.

No caso de Goiânia, há duas leis que servem de base para a modalidade, mas que, segundo especialistas, precisam ser atualizadas para atender à nova realidade das plataformas digitais de mobilidade urbana, cada vez mais populares no Brasil. E, embora muitas cidade tenham decretos que autorizam o mototáxi, a discussão precisa acontecer a partir da Lei Federal nº 13.640/2018, conhecida como Lei do Uber, que confere aos municípios a responsabilidade de regulamentar e fiscalizar o transporte remunerado privado individual de passageiros. Mas que, na leitura das plataformas e muitas vezes da Justiça brasileira, proíbe as gestões municipais de vetá-los.

A realidade dos aplicativos de transporte no Brasil é gigante e, por isso mesmo, não pode mais ser ignorada pela figura do Estado brasileiro. Em todas as suas esferas. Números oficiais da principal associação das plataformas do País, a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), confirmam essa grandeza.

Segundo a associação que reúne empresas líderes no desenvolvimento e utilização de soluções tecnológicas inovadoras para melhorar o transporte de pessoas e de bens - como a entidade se apresenta -, os três principais apps do País (99, Uber e iFood) têm 800 mil motociclistas parceiros.

Thiago Lucas/Artes JC
Transporte por moto: O Brasil precisa enfrentar - Thiago Lucas/Artes JC
Thiago Lucas/Artes JC
Transporte por moto: O Brasil precisa enfrentar - Thiago Lucas/Artes JC

Estudo realizado em 2023 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostrou a evolução dos trabalhadores nessa atividade, ao mesmo tempo em que a comparava com a redução de contribuintes da Previdência Social - outro desafio dos apps para o Brasil.

O número de trabalhadores de transportes inseridos na modalidade de Gig Economy passou de 1,5 milhão no final de 2021 para 1,7 milhão no terceiro trimestre de 2022. Mas, apesar desse crescimento, apenas 23% contribuíram para a previdência social nessa ocupação, seja ela a principal ou secundária.
Gig Economy é o termo que caracteriza relações laborais entre funcionários e empresas que contratam mão de obra para realizar serviços esporádicos e sem vínculo empregatício (tais como freelancers e autônomos), por exemplo via aplicativos.

NO TRÂNSITO, BRASIL MATA POR ANO QUASE A MESMA QUANTIDADE DE MORTOS E FERIDOS NO CONFLITO NA UCRÂNIA

RENATO RAMOS/JC IMAGEM
Para se ter ideia da gravidade da situação, devido à pouca habilidade dos motoqueiros, potencializada pela vulnerabilidade intrínseca das motos, o SAMU atende, somente no Grande Recife, uma média de 200 atendimentos entre a noite de sexta-feira e a manhã de segunda - RENATO RAMOS/JC IMAGEM

O Instituto Zero Morte para a Segurança em Transportes, um instituto pró-vida, é mais uma entidade nacional que alerta para a verdadeira guerra que o Brasil vive nas ruas, avenidas e estradas. E que tem sido agravada exatamente pela má condução de motocicletas associada à ausência de regras e fiscalização. Em 2023, foram 34 mil mortos segundo o DataSUS, quase a mesma quantidade de civis mortos e feridos na Ucrânia durante o conflito, que começou em 2022, segundo o Escritório de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU).

E desse total, 70% são ocupantes de motos - condutores e passageiros. “A forma como o brasileiro vem utilizando motocicletas e ciclomotores é uma tragédia anunciada. Além da maioria dos condutores não possuir habilitação (53% segundo a Senatran - Secretaria Nacional de Trânsito), não usam Equipamentos de Proteção Individual (no máximo o capacete regulamentado de forma medíocre pelo CTB - Código de Trânsito Brasileiro). Faltam as luvas, a jaqueta resistente à abrasão, o protetor de coluna, joelheiras e bota cano médio”, alerta o diretor-presidente do Instituto Zero Mortes, o pesquisador Paulo Pêgas.

E segue no alerta: “Não bastasse essa omissão, os veículos são os que menos agregam tecnologia de segurança ativa e passiva. Uma motocicleta de baixa cilindrada, carregando mais de 30 kg na "garupa", apresenta shimming acima dos 95 km/h ("balanço" ou "tremulação" do guidão), por não ter amortecedor de direção e o peso na traseira deslocar o centro de gravidade. Imagina essa cadeira elétrica fazendo Moto Táxi! E para piorar, quem paga o Seguro de Responsabilidade Civil?”, critica e indaga.

Nas contas do Zero Morte, o prêmio do seguro para proteger os usuários das motos deveria ser de no mínimo R$ 2,95 milhões, tendo como base estudo do IPEA (NT075/2020) que, se corrigido pela IPCA, seria de R$ 4,69 milhões. “A Uber ou a 99 vão fazer uma apólice nesse valor para os usuários? Vamos esperar o caos ou vamos agir com inteligência e coerência? Não é radicalismo nem demagogia, é pelo respeito à vida dos motociclistas, garupas e pedestres!”, finaliza.

O Instituto Zero Morte para a Segurança em Transportes tem como meta principal realizar estudos e atividades de pesquisa que envolvam a segurança em todos os tipos de transportes (rodoviário, ferroviário, aéreo e aquaviário).

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