Transporte por moto: O Brasil precisa enfrentar | Notícia

Transporte por moto: O grito de alerta de um cirurgião diante do colapso silencioso na saúde pública

O médico alerta que a progressão de vítimas e internações por sinistros de trânsito de moto tem sido quase geométrica, refletindo a situação da saúde

Por Roberta Soares Publicado em 17/06/2025 às 7:30

Os sinistros de trânsito, especialmente aqueles envolvendo motocicletas, há pelo menos 15 anos representam um problema significativo para as emergências médicas no Brasil. Contudo, o cenário se agravou drasticamente nos últimos anos, com a saúde pública enfrentando uma sobrecarga sem precedentes.

E esse aumento tem coincidido, em grande parte, com a chegada dos aplicativos de moto, os motoapps ou Uber e 99 Moto. O alerta é feito por ninguém menos que o cirurgião geral de trauma Petrus Moura de Andrade Lima, diretor geral do Hospital da Restauração (HR), a maior emergência do Nordeste e de Pernambuco.

O médico alerta que a progressão de vítimas e internações por sinistros de trânsito de moto tem sido quase geométrica na unidade, refletindo a situação da saúde não só do Estado, mas também do País.

Esse é mais um recorte da série de reportagens Transporte por moto: O Brasil precisa enfrentar, que a Coluna Mobilidade do JC está apresentando para discutir a necessidade de o Brasil enfrentar a criação de regras para o transporte de passageiros com motos.

HOSPITAIS SUPERLOTADOS E CUSTO CRESCENTE

JC Imagem
Transporte por moto: O Brasil precisa enfrentar. Na foto, passageiro manipula celular mesmo na garupa de uma moto - JC Imagem

O impacto direto é sentido na ocupação dos leitos hospitalares. Um grande percentual dos leitos públicos e privados de traumato ortopedia está constantemente ocupado por vítimas de sinistros de trânsito de moto, muitos com lista de espera. Hospitais como Miguel Arraes e Dom Helder Câmara, referências na Região Metropolitana do Recife, vivem superlotados, uma situação que não se resolve apenas com a abertura de novas unidades.

“A superlotação nos hospitais, causada pela imensa demanda de traumas de moto, gera um impacto direto na cirurgia eletiva, que muitas vezes não consegue ser realizada. A entrada de novos pacientes é muito maior que a capacidade do sistema de saúde”, afirma o diretor médico.

O custo financeiro dessa realidade é alarmante. De janeiro a novembro de 2024, foram gastos 233 milhões de reais apenas nas unidades de saúde. Comparativamente, em 2011, esse valor era de 168 milhões. O custo total dos sinistros de trânsito em Pernambuco é estimado em R$ 6 bilhões por ano.

O PERIGO AUMENTOU COM O PASSAGEIRO, QUE NÃO SABE ANDAR NA GARUPA DAS MOTOS

Thiago Lucas/Artes JC
Transporte por moto: O Brasil precisa enfrentar - Thiago Lucas/Artes JC
Thiago Lucas/Artes JC
Transporte por moto: O Brasil precisa enfrentar - Thiago Lucas/Artes JC
Thiago Lucas/Artes JC
Transporte por moto: O Brasil precisa enfrentar - Thiago Lucas/Artes JC

Petrus Moura de Andrade Lima sente no seu trabalho as consequências que a segurança viária percebe nas ruas. São as mesmas causas e sequelas. E elas passam pelo novo componente criado pelas plataformas de transporte para agravar ainda mais os números que o uso individual das motos já provocava: o passageiro dos motoapps.

“Os aplicativos de transporte por moto adicionaram um agravante à situação: o passageiro. Muitas dessas pessoas não estão acostumadas a andar na garupa. No passado, as vítimas eram predominantemente condutores. Nos últimos cinco anos, no entanto, houve um aumento muito grande de mulheres vítimas de quedas e colisões, tanto como passageiras quanto como condutoras”, destaca o médio.

E segue dando a dimensão do impacto na saúde. “Essa mudança tem exigido a abertura de novas enfermarias femininas de traumatologia, que antes eram majoritariamente masculinas. Além disso, os hospitais estão superlotados de passageiros fraturados. A necessidade do condutor de fazer o maior número possível de corridas rapidamente gera imprudências”, diz.

LESÕES COMPLEXAS E RECUPERAÇÃO DEMORADA

Divulgação
Transporte por moto: O Brasil precisa enfrentar. Na foto, Petrus Andrade Lima, diretor médico do Hospital da Restauração - Divulgação

As vítimas de sinistros de trânsito de moto geralmente apresentam lesões mais complexas. Fraturas expostas e cirurgias demoradas são comuns, exigindo muito tempo de internação. A reabilitação dessas vítimas também é longa e demorada.

Segundo o diretor do HR, o tempo de permanência hospitalar varia dependendo da lesão. “Uma fratura exige, no mínimo, 90 dias de recuperação, enquanto um trauma cranioencefálico pode levar mais de 180 dias de internação. Os traumas graves incluem não apenas fraturas, mas também traumas cranioencefálicos e de coluna”, destaca.

E ainda existe o custo indireto. “Além do custo direto para a saúde, há um custo indireto enorme relacionado à reabilitação e ao INSS. Se a invalidez for permanente, o custo se estende pelo resto da vida. Essas pessoas acabam fora do mercado de trabalho”, pontua.

A URGÊNCIA DA REGULAMENTAÇÃO E A PRESSÃO SOCIAL

GUGA MATOS/JC IMAGEM
Uma das propostas que tramitam no Congresso Nacional cria a figura do Prestador de Serviços Independente (PSI), que é definida como a pessoa física que utiliza plataformas tecnológicas para oferecer serviços de transporte e de entrega - GUGA MATOS/JC IMAGEM

Petrus Moura de Andrade Lima ressalta, ainda, que o problema da segurança no trânsito com motos é multifacetado, envolvendo o uso particular do veículo, a pouca qualidade do transporte público e o trânsito ruim das cidades.

“Muitas pessoas usam a moto para fugir do transporte público, para chegar mais cedo. No entanto, não há solução sem discutir a regulamentação. A sociedade precisa assumir sua parcela de responsabilidade, pois por mais que se criem hospitais, não será possível dar conta do volume absurdo de sinistros de trânsito”, grita.

E destaca haver uma pressão social significativa sobre o sistema de saúde devido aos sinistros de trânsito. “Atualmente, 100% dos leitos de traumatologia e traumato ortopedia em algumas unidades são de motos. A conta do atendimento pré-hospitalar do SAMU recai sobre o município, enquanto a conta hospitalar (média e alta complexidade nas UPAs e hospitais) é estadual, assim como os custos indiretos como invalidez e Previdência (INSS)”, diz.

“É necessária uma regulamentação melhor para reduzir o número exorbitante de motos nas ruas. Isso passa por melhorar o transporte público e exigir cursos de pilotagem, especialmente para pessoas com menos tempo de Carteira Nacional de Habilitação (CNH), pois há necessidade de capacitação. Não é aceitável que para pilotar uma moto sequer seja exigida CNH em alguns casos”, critica.

Segundo o médico, há um esforço por parte dos gestores de saúde para tentar reduzir a pressão sobre o sistema. Pelo menos em Pernambuco. Em maio, na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), foi feito um apelo pela regulamentação dos motoapps. Também foi solicitada a expansão da Lei Seca, que antes era muito concentrada na Região Metropolitana do Recife, para tentar diminuir essa pressão.

“No entanto, enquanto o volume de sinistros de trânsito de moto se mantiver nesse patamar absurdo, o sistema de saúde não conseguirá dar conta, gerando perda de dinheiro e, o mais grave, perda de vidas. É preciso que a sociedade repense o uso da moto”, finaliza.

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