Transporte por moto: Guerra de leis e interpretações judiciais transforma regulamentação do motoapp em grande desafio
Além de gerar insegurança administrativa, a guerra de tribunais sinaliza o tamanho do desafio que será uma possível regulamentação do serviço no País

O transporte de passageiros por motocicletas, popularizado por plataformas como Uber e 99, tornou-se palco de uma guerra jurídica no Brasil. O centro do debate reside nos conflitos de legislação e na interpretação das leis existentes que regem a mobilidade urbana e a segurança viária no País. Além de cansar a população e gerar insegurança administrativa, essa guerra de tribunais sinaliza o tamanho do desafio que será uma possível regulamentação do serviço no Brasil, seja em nível federal ou municipal.
E quem sabe bem sobre isso é a cidade de São Paulo, a maior capital brasileira e que vem tentando impedir a operação do Uber e 99 Moto. Recentemente, o município de São Paulo entrou em confronto direto com essas plataformas devido à utilização de motos para transporte remunerado de pessoas, tornando-se a primeira capital a ‘peitar’ as gigantes da mobilidade urbana - Uber e 99.
Ainda em 2023, quando as plataformas ensaiaram lançar o serviço na cidade, a Prefeitura de São Paulo deu um passo drástico ao editar o Decreto nº 62.144/2023, que suspende o uso de motocicletas em serviços de transporte individual remunerado por aplicativo dentro de sua circunscrição. A medida foi tomada após a constatação, por órgãos internos da prefeitura e informações independentes, de um aumento significativo de mortes no trânsito de ocupantes de motocicletas, principalmente condutores.
Esse é mais um recorte da série de reportagens Transporte por moto: O Brasil precisa enfrentar, publicada pela Coluna Mobilidade do JC para discutir a necessidade de o País enfrentar a criação de regras para o transporte de passageiros com motos.
INTERPRETAÇÕES DIFERENTES SOBRE O MESMO ASSUNTO
Toda a questão legal tem como base, principalmente, interpretações diferentes da Lei Federal nº 12.587/2012, a Lei da Mobilidade Urbana. Há quem entenda que as gestões municipais têm autoridade para proibir o serviço de aplicativos de transporte de passageiros com motos e quem defenda que ao município cabe regulamentar ou fiscalizar, não proibir. É por aí que seguem as interpretações.
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Em artigo, o advogado André Wanderley Soares, consultor jurídico em trânsito e mobilidade urbana, e advogado da Associação dos Agentes de Trânsito do Brasil (AGT Brasil), explica que, apesar de informações equivocadas que circulam, os municípios possuem, sim, competência concorrente para legislar e regulamentar questões de mobilidade urbana e segurança viária, de acordo com suas particularidades locais.
“A Lei Federal nº 12.587/2012, a Lei da Mobilidade Urbana, em seu artigo 6º, estabelece as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana que sustentam essa competência. Mais especificamente, o artigo 11-A desta lei dispõe que compete exclusivamente aos municípios e ao Distrito Federal regulamentar e fiscalizar o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros em seus territórios”, pontua.
E cita, ainda, o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), no artigo 24, II, que também ampara a possibilidade de regulamentação municipal, ao prescrever a competência dos órgãos executivos de trânsito dos municípios para planejar, regulamentar e operar o trânsito e promover a segurança viária. “Dessa forma, a atuação do município de São Paulo, ao promulgar o Decreto 62.144/2023, é considerada legítima”, afirma.
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Embora São Paulo tenha se baseado principalmente nas particularidades locais e no alto número de óbitos para justificar seu decreto, André Wanderley Soares destaca em seu artigo que a Lei da Mobilidade Urbana apresenta outro ponto que, interpretado, inviabilizaria a atividade pelo modal motocicleta.
“O Artigo 11-B, I, condiciona a autorização desse serviço à posse de CNH categoria B ou superior com informação de atividade remunerada (o EAR). Motoristas de moto geralmente possuem CNH categoria A. O município poderia ter usado esse fundamento, e a sua omissão ou de outros municípios em regulamentar, mesmo sem usar esse ponto específico, pode ser vista como desobediência à lei federal. Entende-se que a administração pública não pode "fechar os olhos" aos efeitos danosos da atividade e tem o poder-dever de regulamentar, especialmente diante de particularidades locais como o aumento de sinistros de trânsito fatais”, analisa.
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A ARGUMENTAÇÃO DAS PLATAFORMAS QUE GERA O IMPASSE
Por outro lado, plataformas como Uber e 99, que oferecem o serviço de transporte de passageiros com motos, também baseiam sua atuação na Lei Federal nº 12.587/2012. Elas interpretam a Lei da Mobilidade Urbana como um respaldo para a oferta do serviço, argumentando que a legislação permite a regulamentação municipal, mas não a proibição da atividade em si.
Essa interpretação é que tem levado a conflitos com municípios que, como São Paulo, tentam proibir ou regular o serviço, muitas vezes criando legislações específicas com normas de segurança e exigências para os condutores.
PL QUE TRAMITA NA CÂMARA QUER LIBERAR USO DE MOTOCICLETAS
Diante do cenário de conflito e interpretações legais divergentes, tramita na Câmara dos Deputados, desde 2023, o Projeto de Lei 271/23, que propõe alterar a Política Nacional de Mobilidade Urbana para incluir explicitamente os motociclistas entre os autorizados a prestar serviço remunerado individual de passageiros. Se aprovada, a mudança permitiria que condutores com CNH tipo A pudessem atuar no transporte de passageiros por aplicativos em todo o País, superando a exigência atual da CNH tipo B ou superior.
O autor do projeto, deputado Amom Mandel (Cidadania), argumenta que a exclusão dos motociclistas na redação da lei foi um "descuido" que impõe obstáculos tanto aos motoristas quanto aos usuários, que veem no serviço de moto uma alternativa de menor custo. A proposta visa, em resumo, legitimar e integrar o serviço de transporte por aplicativo de moto (como Uber Moto e 99 Moto) ao sistema de mobilidade urbana do País, estabelecendo regras e regulamentos para a atividade. O projeto segue em tramitação.