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Transporte por moto: "Regulamentar motoapp no Brasil é uma tragédia anunciada", alerta Ipea

O Atlas da Violência 2025 revela que, enquanto os homicídios estão em queda, o número de vítimas do trânsito cresce. E os ocupantes de motos dominam

Por Roberta Soares Publicado em 10/08/2025 às 14:09 | Atualizado em 10/08/2025 às 16:36

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Regulamentar o serviço de transporte de passageiros por motocicletas de aplicativo no Brasil, como o Uber Moto e o 99 Moto, que já estão operando em quase 4 mil cidades do País, é uma tragédia anunciada em um cenário já marcado pela alta mortalidade em colisões e quedas de ocupantes de motocicletas - condutores e também passageiros.

O alerta foi feito pelo pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Erivelton Guedes, doutor em engenharia de transporte e corresponsável pela inclusão, pela primeira vez, das mortes no trânsito no Atlas da Violência 2025. Em entrevista à Agência Brasil, Guedes expressou grande pessimismo diante da possibilidade de uma regulamentação do serviço no País.

Qualquer regulamentação pode incentivar o uso do serviço de transporte de passageiros com motocicletas e dar uma falsa impressão de que, seguindo aquele monte de regras, vai dar certo. Não vai porque o risco é inerente ao veículo e termina potencializado pelo passageiro na garupa”, alerta.

AUMENTO ALARMANTE DE MORTES E RISCOS INERENTES

Dados do Atlas da Violência 2025, produzido pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, revelam que, enquanto os homicídios estão em queda, o número de vítimas de sinistros de trânsito (não é mais acidente de trânsito que se define, segundo o CTB e a ABNT) tem crescido consistentemente desde 2020. O total de vítimas subiu de 31.945 em 2019 para 34.881 em 2023.

O fator de maior peso nesse aumento são as ocorrências envolvendo ocupantes de motocicletas, que já respondiam por uma em cada três mortes no trânsito brasileiro em 2023, sendo o usuário da motocicleta a maior vítima dos sinistros de trânsito no Brasil.

Erivelton Guedes prevê que a disseminação dos serviços de aplicativo contribuirá para um aumento ainda maior nas mortes quando os dados de 2024 forem incluídos no Atlas.

O Uber Moto, lançado em dezembro de 2021, em Aracaju (SE), já transportou cerca de 20 milhões de brasileiros e envolveu 800 mil motociclistas. O 99Moto, lançado em janeiro de 2022, expandiu-se para mais de 3,3 mil cidades e já realizou 1 bilhão de viagens.

RISCO DE SINISTROS DE TRÂNSITO EM MOTOS É 17 VEZES MAIOR DO QUE EM CARROS

BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM
Passageiros do serviço de Uber e 99 Moto estão andando soltos na garupa das motos, com capacetes inadequados, dedos do pé expostos e até manuseando celulares - BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM

A vulnerabilidade é uma preocupação central. O presidente da Associação Brasileira de Medicina do Tráfego (Abramet), Antonio Meira Júnior, destaca que a letalidade para motociclistas – a probabilidade de morte em um sinistro de trânsito – é 17 vezes maior em comparação com ocupantes de um automóvel.

Por esse motivo, a Abramet se posiciona contrária ao uso da moto como meio de transporte de passageiros, visto que expõe um número maior de pessoas a riscos graves. Principalmente, os passageiros, que aumentaram muito no Brasil com a explosão do serviço de mototáxi por aplicativo, como Uber e 99 Moto.

Confira alguns dos riscos específicos para os passageiros das motocicletas apontados por especialistas:
Maior exposição ao perigo: O carona está muito mais exposto ao perigo do que o próprio motociclista e, diferentemente do condutor que enxerga o que acontece, o passageiro está passivo às ocorrências.
Falta de proteção: Em caso de impacto, motociclistas e caronas não possuem qualquer proteção, e o impacto é absorvido diretamente por seus corpos.

Vestimenta inadequada: É comum ver pilotos e passageiros com vestimentas inadequadas, como sandálias ou roupas curtas, em vez das recomendadas (botas, calças e jaquetas de couro, capacete). Passageiros frequentemente seguram o celular em vez de se segurar no piloto. E, no Nordeste, é rotina ver condutores descalços.

Vulnerabilidade nas via: Motos circulam entre veículos de maior massa e resistência, muitas vezes em velocidades diferentes e no meio das faixas, o que dificulta que sejam vistas.

Não há equipamentos de segurança que evitem que os passageiros sejam lançados em caso de colisão. Além disso, imperfeições no asfalto, pedras, areia ou óleo – que seriam pequenos problemas para um carro – podem provocar incidentes graves com motos.

MUITAS VEZES AS QUEDAS SÃO LEVES, MAS OS FERIMENTOS SÃO GRAVES

Bruno Peres/Agência Brasil
Mototáxi por aplicativos é tragédia anunciada, diz pesquisador do Ipea - Bruno Peres/Agência Brasil

Os especialistas alertam que as consequências dessa desproteção são lesões severas e politraumas, que, quando não são fatais, frequentemente resultam em internações prolongadas, deficiências ou sequelas permanentes.

E o impacto social é considerado imensurável, com muitas vítimas ficando incapazes para o trabalho, necessitando de fisioterapia, tratamento pós-hospitalar ou dependência vitalícia, o que causa uma complexa mudança de estilo de vida de toda a família.

Apesar dos problemas e dos alertas, Erivelton Guedes avalia que a suspensão desses serviços é improvável. “Há uma pressão econômica das empresas e uma demanda por trabalho e renda gerados pela atividade. É uma luta perdida, onde a moto por aplicativo tende a prevalecer, pois muitos condutores veem-se como empreendedores ou arriscam a vida por não ter outra alternativa de sustento”, diz.

Guedes salienta a necessidade de o poder público oferecer alternativas de emprego mais saudáveis porque, enquanto elas não existirem, a pressão pela moto por aplicativo continuará a ganhar.

A CONTA BILIONÁRIA DOS SINISTROS DE TRÂNSITO PARA A SAÚDE

Enquanto se fala em regulamentar o Uber e 99 Moto, a saúde pública brasileira encontra-se à beira de um colapso provocado pelas mutilações do trânsito, especialmente as sofridas por ocupantes de motocicletas. Os sinistros de trânsito geraram uma despesa de R$ 3,8 bilhões em internações hospitalares no Sistema Único de Saúde (SUS) ao longo de uma década, entre 2015 e 2024. Nesse período, o sistema público registrou 1,8 milhão de internações de vítimas do trânsito.

De acordo com médicos do tráfego e das emergências, que analisaram os dados do Ministério da Saúde, essas ocorrências pressionam cada vez mais os leitos de UTI e resultam em internações mais longas, elevando os custos com procedimentos e reabilitação. O impacto financeiro se estende à previdência e assistência social. Esse alerta foi feito pelas Associações Brasileiras de Medicina do Tráfego (Abramet) e Medicina de Emergência (Abramede).

Com os R$ 3,8 bilhões gastos diretamente pelo SUS, seria possível realizar diversas melhorias de infraestrutura e saúde no País:

- Construir de 32 a 64 hospitais de médio porte.
- Implantar entre 17 mil e 35 mil quilômetros de ciclovias urbanas.
- Duplicar cerca de 505 quilômetros de rodovias federais.
- Adquirir 15 mil ambulâncias básicas (tipo A).
- Adquirir mais de 2 milhões de doses de vacina contra o Vírus Sincicial Respiratório (VSR).

MOTOQUEIOS: O PESO MAIOR NO ORÇAMENTO DO SUS

O levantamento da Abramet e Abramede confirmou que as vítimas de sinistros de trânsito envolvendo motos são as que mais custam caro ao SUS. Essa realidade se acentuou nos últimos quatro anos com a expansão do delivery e, em particular, a criação do transporte de passageiros por aplicativo, como Uber e 99 Moto, serviço que já opera em aproximadamente 4 mil cidades brasileiras.

Os ocupantes de veículos de duas rodas são os mais vulneráveis. Eles representam 60% de todos os casos de internação por sinistros de trânsito. Em 2024, o número de internações de motociclistas atingiu 150 mil, superando o total combinado de pedestres e ciclistas no mesmo período. Pedestres são o segundo maior grupo (16%), seguidos por ciclistas e ocupantes de automóveis (ambos com 7%).
O perfil dos hospitalizados por sinistros de trânsito no SUS é majoritariamente masculino (78%) e jovem/adulto, com 49% tendo entre 20 e 39 anos.

ALERTA REGIONAL DE PERNAMBUCO E NORDESTE

A gravidade da situação das internações e seus custos se repete em nível regional. Em Pernambuco, o SUS gastou mais de R$ 79 milhões com vítimas do trânsito nos últimos dez anos. Apenas em 2024, os custos no Estado ultrapassaram R$ 10 milhões, o maior valor registrado desde 2015.

O número de internações em Pernambuco deu um salto significativo em 2024, chegando a 7.320. Isso representa um aumento de 34,2% em relação a 2023 e o maior registro da série histórica analisada (2015-2024). Esse aumento quebra uma sequência de anos mais estáveis, sinalizando um alerta urgente para a segurança viária no estado. Do total de internações em Pernambuco na década, 60% eram ocupantes de motocicletas.

Na Região Nordeste, houve uma escalada nos atendimentos por sinistros de trânsito desde 2021. Em 2024, foram 65.788 internações. No acumulado da década (2015-2024), a região registrou mais de meio milhão de internações (514.702), representando uma parcela significativa do total nacional e pressionando o orçamento de urgência e emergência. Os custos com internações no Nordeste alcançaram quase R$ 98 milhões em 2024, o maior valor da série histórica, totalizando quase R$ 1 bilhão na década. O aumento dos custos na região reflete tanto o crescimento das internações quanto a maior complexidade dos atendimentos e tempo de permanência hospitalar, majoritariamente devido às vítimas de motocicletas.

NÚMEROS QUE CHOCAM O PAÍS

Os dados do trânsito revelam um cenário de impacto devastador na saúde pública e na sociedade:

1,8 milhão de internações hospitalares no SUS nos últimos 10 anos.

R$ 3,8 bilhões gastos com despesas diretas para o SUS no mesmo período.

A cada 2 minutos, uma pessoa dá entrada nas emergências do SUS após trauma em sinistro de trânsito.

6 dias é o tempo médio de internação para tratamento.
R$ 1.680 é a despesa diária e direta por internação.

O trânsito mata mais que armas de fogo em 14 estados e supera mortes por armas em 71% dos municípios brasileiros.

Em 2023, foram 34.810 óbitos por sinistro de trânsito contra 30.254 óbitos por arma de fogo.

 

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