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CNH sem autoescolas: governo federal flerta com a ‘uberização’ da formação do condutor brasileiro sob o argumento da democratização do acesso à CNH

Em entrevista à Coluna Mobilidade, secretário nacional de Trânsito, Adrualdo Catão, fez a defesa da polêmica proposta do Ministério do Transporte

Por Roberta Soares Publicado em 10/08/2025 às 7:30

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Se você não pode enfrentar o inimigo, junte-se a ele para vencê-lo depois. Essa é a principal lógica da proposta federal de desobrigar um limite mínimo de aulas em autoescolas e também fora delas para habilitar os condutores brasileiros - os novos e, principalmente, os milhares que, segundo levantamento oficial, já dirigem mesmo sem Carteira Nacional de Habilitação (CNH) nas ruas, avenidas e estradas do País.

E o principal alvo não é o motorista (que conduz veículos de quatro ou mais rodas), mas os quase 20 milhões de condutores de motocicletas que não estão habilitados e que representam 53,8% do total de proprietários desse tipo de veículo, como mostrado no documento Panorama Estatístico Brasileiro de Motocicletas, Motonetas e Ciclomotores.

Sob o discurso de democratizar o acesso à CNH, o governo aposta na flexibilização do que define como burocracia do setor e flerta com a ‘uberização’ da formação do condutor, principalmente o de motocicletas, que respondem por até 70% das mortes, ferimentos e mutilações provocadas pelo trânsito brasileiro - um monstro que mata 35 mil pessoas por ano e mutila outras 200 mil, além dos milhares de feridos.

Em entrevista à Coluna Mobilidade, o secretário nacional de Trânsito, Adrualdo Catão, fez a defesa dos argumentos do Ministério do Transporte para as grandes mudanças propostas e que têm gerado muita polêmica há pelo menos uma semana no País. A lógica do secretário é que a desburocratização do processo de habilitação vai ter um efeito positivo sobre a multidão de condutores - a maioria motoqueiros/motociclistas - inabilitados.

FLEXIBILIZAÇÃO PARA DESBUROCRATIZAR E DEMOCRATIZAR O ACESSO À CNH

Na prática, o que o governo quer é deixar o cidadão livre para escolher, dentro de regras flexíveis, a forma como vai se preparar para obter a CNH. Mas sabendo que terá que ser aprovado nos testes teóricos e práticos oficiais.

BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM
Proposta flerta com a ‘uberização’ da formação do condutor, principalmente o de motocicletas, que respondem por até 70% das mortes, ferimentos e mutilações provocadas pelo trânsito brasileiro - BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM

Quer abrir opções, entre elas a possibilidade, sim, da criação de plataformas - como vem sendo cogitado nos bastidores - que queiram entrar no novo nicho da instrução de trânsito digital, além do estímulo aos instrutores autônomos.

As consequências disso? Na visão do secretário, o que importa é a validação nas provas teóricas e práticas dos Detrans e da Senatran, que deverão ser reformuladas para se tornarem mais exigentes. Pelo menos essa é a promessa.

Ao mesmo tempo, o secretário defende que, quando o mercado se acalmar e a vida seguir, serão as autoescolas que irão dominá-lo do mesmo jeito porque elas também terão flexibilizações nas exigências legais, por exemplo.

E A QUALIDADE DA FORMAÇÃO DOS NOVOS CONDUTORES, COMO FICA?

Sobre o que mais importa para quem conta os mortos e feridos no trânsito diariamente - a qualidade da formação dos condutores brasileiros -, o secretário também tem um bom argumento para rebater as críticas de que tudo vai piorar.

“O maior problema hoje no trânsito é a imprudência, o comportamento humano. Há também a imperícia, mas o pior é o cidadão que sabe a regra e não a segue. Não estou fazendo um "trade-off" de segurança por flexibilidade. Pelo contrário, estou combatendo a burocracia e o custo que expulsa o cidadão do sistema formal. A meta é clara: democratizar o acesso à CNH”, reforça Adrualdo Catão.

Ao usar a expressão “trade-off”, o secretário quis dizer que o governo não está fazendo uma troca compensatória, onde se ganha algo em um aspecto, mas se perde em outro. Ou seja, o governo acredita que vai tirar milhões da clandestinidade e formar novos condutores nos mesmos padrões atuais.

Ministério dos Transportes/Divulgação
A lógica do secretário nacional de Trânsito, Adrualdo Catão, é que a desburocratização do processo de habilitação vai ter um efeito positivo sobre a multidão de condutores - a maioria motoqueiros/motociclistas - inabilitados - Ministério dos Transportes/Divulgação

Confira a entrevista na íntegra:

JC: Secretário, o governo tem falado muito em flexibilizar e democratizar o acesso à CNH. Qual é o objetivo principal por trás dessas propostas?

Secretário Adrualdo Catão: Nosso principal objetivo é a democratização do acesso à CNH. Hoje, a burocracia e, principalmente, o custo elevado são fatores que expulsam o cidadão do processo. Temos mais de 20 milhões de pessoas dirigindo sem CNH, e outros 20 milhões que gostariam de ter, mas não conseguem devido ao preço. A ideia é tornar o curso mais acessível possível, sem deixar ninguém sem formação. Sabemos das lacunas que existem na fiscalização de trânsito e isso precisa ser melhorado pelos estados e municípios, mas não se trata apenas de fiscalizar, mas de facilitar o acesso à habilitação.

JC: Uma das grandes novidades que se comenta é a flexibilização do curso teórico. Ele continuará sendo obrigatório? E haverá mudanças no formato?

Adrualdo Catão: Sim, o curso teórico continua sendo obrigatório. Não mexemos na lei, tudo o que está no Código de Trânsito Brasileiro (CTB) permanece. A grande mudança é na flexibilidade: hoje, o cidadão vai para uma autoescola física. Nossa proposta é dar três ou quatro opções para o cidadão: ele poderá escolher entre uma autoescola física, aulas EAD (online) oferecidas pela Senatran, ou por uma escola pública dos Detrans. As autoescolas também poderão oferecer o curso teórico de forma remota, via EAD.

JC: As 45 horas de aulas teóricas, que muitos consideram cansativas, serão mantidas? Se não forem, o senhor não acha temeroso flexibilizar tanto assim?

Adrualdo Catão: Atualmente, são 45 horas teóricas. A ideia é que agora tenha um novo conteúdo. Embora a minuta da proposta ainda não esteja pronta, minha opinião é que 45 horas com a pessoa sentada não é o ideal. Não será mais exigido uma quantidade mínima de horas aulas, nem teóricas nem práticas. Mas o candidato terá que passar nas provas, que serão mais rigorosas.

JC: E no que diz respeito às aulas práticas, que são a etapa mais difícil do processo de habilitação e costumam ser o maior gargalo financeiro para muitos? Além de ser um dos pontos mais questionados por comprometer a formação?

Adrualdo Catão: Essa é uma das mudanças mais significativas. Nós vamos desobrigar a realização de aulas nas autoescolas para as aulas práticas. Atualmente, são 20 horas de aula prática obrigatórias. Com a nova proposta, não haverá hora mínima de aulas práticas. O candidato fará a quantidade de aulas práticas que ele quiser, vamos deixar que o cidadão escolha. Se ele não se sentir apto, pode procurar um Centro de Formação de Condutores (CFC) ou um instrutor autônomo. Estamos condenando a burocracia e o custo que expulsam o cidadão da formalidade.

 

Ministério dos Transportes/Divulgação
Em entrevista à Coluna Mobilidade, o secretário nacional de Trânsito, Adrualdo Catão, fez a defesa dos argumentos do Ministério do Transporte para as grandes mudanças propostas e que têm gerado muita polêmica há pelo menos uma semana no País - Ministério dos Transportes/Divulgação

JC: Essa abertura para instrutores autônomos levanta questões importantes em relação à qualidade, credenciamento e, principalmente, fiscalização desses profissionais?

Adrualdo Catão: Para ser instrutor, a pessoa precisará fazer um curso de instrutor e se credenciar no Detran. A boa notícia é que o curso de instrutor também poderá ser online. Queremos incentivar as pessoas a se tornarem instrutores, gerando emprego, inclusive.

JC: Circula nos bastidores do setor a informação praticamente certa de que as gigantes da mobilidade urbana, Uber e 99, já estariam adaptando suas plataformas para o serviço de cadastro de instrutores, inclusive conectadas aos canais do governo federal? Uma das razões, inclusive, da expressão ‘uberização da formação de condutores’. Isso é verdade?

Adrualdo Catão: Isso não procede. O governo não vem tratando disso especificamente com as plataformas. Mas, a minha opinião é que, se uma plataforma fizesse isso, tivesse essa visão de futuro, seria um "golaço", porque hoje o CFC opera quase como um monopólio. Isso também pode ser uma fonte de renda para cidadãos que estão dirigindo sem CNH, na clandestinidade. Eles poderão se habilitar e se cadastrar para ser instrutor, tendo uma oportunidade de trabalho.

JC: E sobre algumas exigências relacionadas aos veículos, por exemplo, como o carro com duplo comando para as aulas práticas? Como isso seria adaptado com a flexibilização de instrutores?

Adrualdo Catão: Não vamos obrigar o duplo comando, porque isso não está previsto em lei. Queremos deixar que os instrutores escolham. Além disso, o uso de carro particular para as aulas poderá ser permitido, como já acontece em alguns Estados.

JC: As provas práticas também passarão por alguma revisão?

Adrualdo Catão: Sim, o exame prático será aprimorado. Ele precisa exigir e medir o controle do carro e da motocicleta pelo candidato. Hoje, ele apenas cumpre algumas ações que pouco influenciam na sua habilidade de conduzir um veículo. Essa é a verdade. Principalmente no caso do exame prático para condução de motocicletas. Sabemos que muitos Detrans não fazem a prova na rua, como deveria ser, porque os examinadores não querem. Nossa ideia é melhorar a qualidade da avaliação oficial exatamente para forçar os candidatos a se qualificar para as provas. E fazer com que os Detrans fiscalizem mais.

JC: Temos uma previsão para a oficialização das mudanças? Como está o processo? Já há uma minuta da proposta? No setor, tudo ainda é visto como uma ideia isolada do Ministério dos Transportes, ainda sem o aval do presidente Lula.

Adrualdo Catão: A minuta da proposta está quase pronta e será finalizada na próxima semana para que possamos iniciar o processo, abrindo uma consulta pública. Teremos uma reunião com os presidentes dos Detrans no dia 13 de agosto para passar o conceito macro da proposta e ouvir sugestões, demandas e necessidades dos órgãos. Tudo será regulamentado por uma resolução do Conselho Nacional de Trânsito (Contran).

Ministério dos Transportes/Divulgação
Adrualdo Catão, secretário nacional de Trânsito (Senatran) - Ministério dos Transportes/Divulgação

JC: E as autoescolas, como serão tratadas diante das possíveis mudanças?

Adrualdo Catão: Nossa ideia é flexibilizar o máximo possível. Todo esse alívio e flexibilização no processo de habilitação tem que ser aplicado às autoescolas também. Elas têm multas até por coisas pequenas como o tamanho de um quadro negro usado em sala de aula. Precisamos desburocratizar para elas também. Infelizmente, o setor não tem trazido contrapropostas, apenas defende o fechamento do mercado e a CNH Social. Mas, na minha percepção, mesmo com as mudanças, as autoescolas irão dominar o mercado devido à inércia da sociedade em buscar o novo. Acredito que a maioria das pessoas tendem a seguir com elas, que poderão usufruir da mesma flexibilização dos instrutores autônomos.

JC: Por fim, secretário, qual o argumento do governo em defesa da proposta quando se considera o que mais importa no trânsito: evitar sinistros, mortos e feridos qualificando a formação dos condutores brasileiros? Ao flexibilizar e ‘uberizar’ a retirada da CNH, não há o risco de que a sinistralidade e a fatalidade no trânsito brasileiro piore?

Adrualdo Catão: O maior problema hoje no trânsito é a imprudência, o comportamento humano. Há também a imperícia, mas o pior é o cidadão que sabe a regra e não a segue. Não estou fazendo um "trade-off" de segurança por flexibilidade. Pelo contrário, estou combatendo a burocracia e o custo que expulsa o cidadão do sistema formal. A meta é clara: democratizar o acesso à CNH.

POSSÍVEL PARCERIA COM AS PLATAFORMAS

Em entrevista ao Jornal Correio do Estado, do Mato Grosso do Sul, entretanto, o secretário afirmou que a Uber foi ao Ministério do Transporte para tentar uma “parceria” no projeto. E que a intenção era ajudar a modernizar, baratear e desburocratizar todo o processo, envolvendo muitas pessoas no mercado de trabalho e tirando o “monopólio das autoescolas”.

“Eu [Uber] vou ensinar o motorista por meio do curso da Senatran. Quando ele se certificar, vai receber no aplicativo a nomeação de instrutor, que qualquer cidadão vai poder ter acesso para confirmar a veracidade do certificado e, assim, contratar os serviços do profissional”, explicou Adrualdo Catão.

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