Transporte por moto: Explosão do uso de motocicletas provoca epidemia de mortes e acelera colapso do transporte público, confirma análise
O boom das motos no Brasil, puxado pelos apps de transporte de passageiros, alimenta uma epidemia de mortes e ameaça o transporte público

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Uma análise recente realizada pela Vital Strategies no âmbito da Iniciativa Bloomberg de Segurança Viária Global (BIGRS) confirmou que o crescimento exponencial no uso de motocicletas como meio de transporte, inclusive remunerado de passageiros, não apenas alimenta uma epidemia de mortes no trânsito, mas também acelera o colapso do transporte público coletivo no Brasil. É uma crise silenciosa e devastadora que ameaça o futuro da mobilidade nas cidades brasileiras.
A situação é tão grave que os especialistas que elaboraram a análise - apresentada a atores estratégicos do setor de transporte, públicos e privados - chegam a comparar o impacto social da motocicleta a um dos capítulos mais sombrios da história do País sob a ótica da mobilidade urbana e, principalmente, da saúde pública e da segurança viária.
O foco principal da análise é fazer um grave alerta: que, caminhando na direção que o Brasil caminha - de estímulo ao transporte individual e, agora, em tempos de aplicativos como Uber e 99 Moto, ao uso indiscriminado de motocicletas até para o transporte remunerado de passageiros -, muitas cidades do País vão perder seus sistemas regulares de transporte público coletivo.
ESTÍMULO AO USO DE MOTOS PROVOCA O COLAPSO DO TRANSPORTE PÚBLICO E, CONSEQUENTEMENTE, DAS CIDADES
A análise mostra que o avanço das motos está inserido em um ciclo vicioso. “A deterioração do transporte público leva mais pessoas a optarem pelo transporte individual, como a motocicleta. Esse movimento, por sua vez, enfraquece ainda mais o sistema de transporte coletivo”, alerta Dante Rosado, gerente sênior da Vital Strategies.
O pesquisador ainda vai além e adverte para um cenário futuro desolador, similar ao do sudeste asiático, onde o modelo de mobilidade é perigoso e exclui muitas pessoas, principalmente as mais pobres e que vivem nas periferias.
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“Corremos o risco de perder sistemas de transporte público por ônibus", adverte Dante Rosado, destacando que cidades médias, de até 250 mil habitantes, já não possuem mais sistemas de transporte e dependem exclusivamente de motos.
E segue: “Isso limita o acesso de grande parte da população a serviços essenciais como saúde e educação, enquanto o poder público se mantém em uma posição confortável, sem muitas cobranças da sociedade, que também se mostra muito descrente de soluções e buscando suas próprias alternativas, que são exatamente o transporte individual e, sobretudo, a motocicleta", alerta.
O CHAMADO SEGUNDO BOOM E OS CUSTOS SOCIAIS




O Brasil vive o que os especialistas chamam de "segundo boom" da motocicleta, um fenômeno que se intensificou a partir de 2020 e está diretamente ligado aos problemas enfrentados pelo transporte público coletivo. Impulsionada por fatores como preço acessível, baixo custo de manutenção e a agilidade nos deslocamentos, a produção de motocicletas em 2024 atingiu o maior patamar desde 2012 - mostra a análise.
Esse crescimento, no entanto, gerou e gera um custo social imenso. A análise mostra que, entre 1998 e 2024, a frota de motocicletas cresceu 12 vezes, enquanto a frota total de veículos aumentou 5 vezes. E que o resultado desse crescimento assustador é alarmante - apontam os dados:
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- Em 2024, 34.881 pessoas morreram no trânsito, o que representa uma média de mais de 95 mortes por dia.
- O custo social dos sinistros de trânsito entre 2007 e 2018 foi estimado em R$ 1,5 trilhão, ou R$ 136 bilhões por ano.
- A gravidade é tanta que em quatro estados brasileiros (Santa Catarina, São Paulo, Tocantins e Piauí), o número de mortes de ocupantes de motociclistas já supera o de homicídios por arma de fogo.
“Essa realidade levou o pesquisador Eduardo Vasconcellos a afirmar: É difícil encontrar na história do Brasil, fora a escravidão, um fenômeno social tão destrutivo quanto a motocicleta”. A afirmação consta da análise realizada pela Vital Strategies/Iniciativa Bloomberg.
OCUPANTES DE MOTOS SÃO AS PRINCIPAIS VÍTIMAS DO TRÂNSITO
Outro enfoque preocupante da análise é sobre a predominância dos ocupantes de motos (depois do Uber e 99 Moto, não são apenas condutores, mas também passageiros) como as principais vítimas de mortes e mutilações no trânsito.
“O perfil das vítimas de trânsito no Brasil mudou drasticamente. Em 1998, os pedestres representavam 66% dos mortos. Em 2023, os motociclistas se tornaram o maior grupo de vítimas, correspondendo a 46% do total”, alerta Dante Rosado.
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As estatísticas apresentadas na análise, inclusive, mostram uma tendência preocupante:
Entre 2010 e 2020, enquanto o número total de mortes no trânsito caiu 24%, as mortes de motociclistas aumentaram 10%. Mais recentemente, entre 2020 e 2023, as mortes de motociclistas cresceram 13,8%, um ritmo quase duas vezes maior que o aumento do total de mortes no trânsito (7%).
Segundo Dante Rosado, a lógica é clara: "Mais gente usando, mais mortes e mutilações. São os ocupantes de motos que estão puxando os números da sinistralidade no trânsito para cima".
RISCO DE MORRER NO TRÂNSITO É 200 VEZES MAIOR NUMA MOTOCICLETA DO QUE NUM ÔNIBUS






A análise reforça que a motocicleta apresenta riscos intrínsecos: falta de proteção física, menor estabilidade e maior complexidade na frenagem. E que a diferença de risco em relação ao transporte coletivo, por exemplo, é gritante: um usuário de motocicleta teria 200 vezes mais chances de morrer no trânsito do que um passageiro de ônibus, por exemplo.
Essa vulnerabilidade estaria ligada ao fato de que o corpo humano, por sua vez, só é projetado para suportar impactos de até 30 km/h, o que potencializa o perigo no caso do uso de motos.
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E que fatores de risco comportamentais, como excesso de velocidade, consumo de álcool e não uso do capacete, agravam o cenário. O uso correto do capacete, por exemplo, reduz em 40% a chance de morte e em 70% a de lesão grave.
Além disso, o chamado “segundo boom" estaria fortemente associado a fatores ocupacionais. “O uso da motocicleta cresceu como estratégia de inserção econômica, impulsionado por aplicativos de entrega e transporte. Isso resulta em jornadas longas e exaustivas e pressão para cumprir prazos, sem que o custo social desse modelo de negócio seja contabilizado”, afirma o pesquisador.
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Para reverter essa crise, os especialistas da Vital Strategies/Iniciativa Bloomberg defendem uma mudança de paradigma no planejamento urbano: trocar o foco na fluidez do trânsito para a maximização da segurança das pessoas. Nesse novo modelo, o transporte coletivo precisa ser o pilar central.
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“A solução passa pela gestão de velocidade, com a recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) de limites de 50 km/h em vias urbanas e 30 km/h em áreas de interação com pedestres e ciclistas. E a priorização, em todas as suas formas - viária, financeira e social - do transporte público coletivo”, alerta Dante Rosado.
A análise deixa uma mensagem final, alertando que um sistema de mobilidade não será sustentável se não for seguro. “Por isso, a sociedade brasileira precisa decidir qual modelo de cidade deseja antes que seja preciso chegar ao fundo do poço”, finaliza o pesquisador.