Transporte por moto: Ipea alerta que mortalidade por motocicletas explodiu no Brasil e não recomenda regulamentação dos motoapps no País
A moto é atualmente a modalidade de transporte que mais mata no trânsito brasileiro, respondendo por quase 40% das mortes em sinistros de trânsito
Clique aqui e escute a matéria
O transporte remunerado de passageiros com motocicletas, atualmente conhecido como o Uber e 99 Moto, é um problema para a segurança viária, a saúde pública e a previdência social do Brasil e a regulamentação do serviço no País não é recomendada por ser arriscada e desafiadora. Essa constatação, já defendida por muitos especialistas das mais diferentes áreas, foi confirmada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
O instituto publicou nesta quarta-feira (26/11) a Nota Técnica (NT) n° 57, com o objetivo de aprofundar o debate sobre as externalidades negativas associadas ao crescimento do uso de motocicletas no trânsito brasileiro. O estudo - intitulado Mortalidade e morbidade das motocicletas e os riscos da implantação do mototáxi no Brasil - conclui que, dadas as fragilidades intrínsecas do veículo e o forte aumento na mortalidade e morbidade, não é recomendada a regulamentação do transporte de passageiros com motos - o mototáxi que, desde 2021, virou os moto apps, como Uber e 99 Moto, no Brasil.
No estudo, o IPEA aponta que o crescimento das motocicletas na matriz modal trouxe graves consequências para a segurança viária e saúde pública, incluindo o aumento da quantidade de sinistros, mortes e incapacitações, transformando a mortalidade relacionada a esses veículos na principal externalidade negativa associada aos deslocamentos urbanos no País.
A principal razão é uma só: a motocicleta é atualmente a modalidade de transporte que mais mata no trânsito brasileiro, respondendo por quase 40% das mortes em sinistros de transporte terrestre, ou seja, em sinistros de trânsito (não se define mais como acidentes de trânsito, segundo o CTB).
“A natureza da motocicleta é tão inerentemente frágil que, independentemente das regras impostas, o alto risco de lesões graves e óbito persiste, tornando o uso comercial desta modalidade para passageiros uma política pública de alto risco sanitário e viário”, alerta Erivelton Pires Guedes, um dos autores do estudo.
- Transporte por moto: Sem exigências e fiscalização, condutores e passageiros dos motoapps só contam com a sorte. Veja dicas para reduzir riscos
- Transporte por moto: SAMU afirma que a cada 10 sinistros de trânsito no Grande Recife, 9 envolvem motocicletas
- Transporte por moto: No País do Uber e 99 Moto, sinistros de motocicleta custam R$ 300 bilhões e colapsam 70% dos hospitais brasileiros, apontam ortopedistas
A Nota Técnica também foi elaborada pelos técnicos de planejamento e pesquisa do Ipea Carlos Henrique Ribeiro de Carvalho e Carlos Eduardo de Carvalho Vargas.
VULNERABILIDADE DAS MOTOCICLETAS: MAIOR RAZÃO PARA NÃO REGULAMENTAR OS APPS
No estudo, os pesquisadores do Ipea enfatizam que as motocicletas são veículos inerentemente vulneráveis porque a ausência de estrutura de proteção física (carrocerias, airbags, por exemplo) expõe diretamente condutor e passageiro a impactos. E cita estudos que indicam que o risco de morte de um motociclista ou passageiro de motos é até 20 vezes maior do que o de ocupantes de automóveis.
A Nota Técnica argumenta que a regulamentação dos serviços de mototáxi é inadequada principalmente pela baixa característica de proteção ao usuário, o que implica um alto risco de lesões graves e óbito em caso de sinistros.
-
Transporte por moto: Explosão do uso de motocicletas provoca epidemia de mortes e acelera colapso do transporte público, confirma análise
-
Transporte por moto: Maioria das motocicletas usadas no serviço de Uber e 99 Moto não suporta peso de duas pessoas
-
Transporte por moto: "Regulamentar motoapp no Brasil é uma tragédia anunciada", alerta Ipea
Entre os principais riscos e fragilidades apontados para a não regulamentação do transporte remunerado de passageiros com motos estão a vulnerabilidade do carona (passageiro), que viaja "solto" na parte traseira, sem proteção física em caso de queda ou colisão. Isso porque pequenas ações incorretas do carona podem alterar o centro de gravidade e comprometer a estabilidade do veículo, especialmente em alta velocidade.
Outro aspecto é a ausência de equipamentos de segurança adequados. Isso porque a necessidade de atender a passageiros de diversos tamanhos inviabiliza que o mototaxista ofereça capacetes devidamente ajustados. Além disso, acessórios como toucas balaclavas descartáveis (importantes para evitar a transmissão de doenças de pele ou capilares) e vestimentas de proteção adequadas (joelheiras, cotoveleiras) raramente são oferecidos, expondo o passageiro.
O PERIGO DO USO DAS MOTOS DE BAIXA CILINDRADA
A sobrecarga e a dirigibilidade das motocicletas de baixa cilindrada - predominantes no serviço de mototáxi - também foram citadas no estudo. Segundo os pesquisadores, essas motos frequentemente excedem sua capacidade de carga com duas pessoas, comprometendo sistemas cruciais como frenagem e amortecimento.
-
Transporte por moto: Ocupantes de motos representam mais de 80% das vítimas atendidas pelo SAMU no Grande Recife
- Transporte por moto: Saúde pública do Brasil à beira do colapso com os ocupantes das motocicletas, agora também mulheres
- Transporte por moto: Chegou a hora de enfrentar. Não dá mais para esperar
“O uso de aplicativos e, consequentemente, do celular, agravam os riscos. A expansão dos serviços de mototáxi via aplicativos digitais elimina o controle da frota pelo poder público e aumenta o risco de sinistros porque o motorista de aplicativo frequentemente utiliza o celular para monitorar e aceitar viagens durante a condução, o que é proibido por lei”, alerta o pesquisador Carlos Henrique de Carvalho.
EXPLOSÃO DO USO DE MOTOS COMPROMETE O TRANSPORTE COLETIVO NAS CIDADES
E, por fim, mas não menos importante, o estudo focou no impacto da explosão do uso das motos no transporte público coletivo. “A proliferação do mototáxi, especialmente via aplicativos, afeta a sustentabilidade financeira do transporte público porque os serviços de moto se concentram nas viagens mais curtas e economicamente viáveis, deixando o transporte coletivo com as viagens mais longas e de maior custo. Isso gera déficit financeiro para os sistemas. E uma cidade não pode viver sem transporte público porque, sem ele, ninguém consegue transitar. O transporte coletivo precisa sempre ser incentivado, melhorado”, diz.
Luiz Carlos Néspoli, superintendente da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), que participou como debatedor durante a apresentação da Nota Técnica do Ipea, foi ainda mais fundo no impacto que o serviço de motoapps gera ao transporte público coletivo.
“Temos estudos que mostram que se houver uma migração de 10% dos passageiros do transporte coletivo para o individual, o impacto financeiro no transporte público equivale a 16%. Se reduzirmos a oferta para reduzir o custo, comprometemos a qualidade do serviço. E se mantivermos a oferta para garantir qualidade, tem que ter subsídio público. Ou seja, é uma política pública perversa. Estamos usando subsídios públicos para bancar o deslocamento privado e fortalecer o negócio dos aplicativos. Isso não é justo”, adverte.
DIAGNÓSTICO DA MORTALIDADE E MORBIDADE PROVOCADA PELAS MOTOS
O diagnóstico realizado pelo IPEA, que teve como fontes dados oficiais da segurança viária e da saúde pública brasileiras, mostra uma tendência alarmante de crescimento na sinistralidade e nos custos para o Sistema Único de Saúde (SUS). O aumento da frota de motocicletas no Brasil e as consequências dessa expansão foram detalhados no material.
A frota de motocicletas e motonetas saltou de aproximadamente 2,7 milhões em 1998 para mais de 34,5 milhões em 2024 – um aumento superior a 12 vezes em 26 anos. Segundo o Ipea, nos anos mais recentes (2020-2024), o crescimento permaneceu robusto, impulsionado, em parte, pelo desenvolvimento dos aplicativos de moto, como Uber e 99 Moto, serviço criado a partir do fim de 2021, em Aracaju (SE).
Outro dado alarmante foi o aumento de mortes de usuários de motocicleta (condutores e passageiros), que cresceu de 792 em 1996 para 13.521 em 2023. No final do século passado, as mortes de usuários de motocicleta representavam 3% do total, chegando a quase 40% das mortes em 2023.
A alta morbidade e o impacto direto no SUS também foram destacados. O estudo do Ipea aponta que as internações de vítimas de sinistros com motocicletas no SUS saltaram de 15.614 em 1998 para 165.894 em 2024, um crescimento de mais de 11 vezes. Em 2024, as internações de vítimas de sinistros com motocicletas responderam por aproximadamente 60% das internações totais por sinistros de transporte terrestre no País.
CUSTOS HOSPITALARES COM VÍTIMAS DAS MOTOS MAIS UMA VEZ ASSUSTADORES
Um dos pilares que embasam a não recomendação da regulamentação dos moto apps é o custo das vítimas para a saúde pública. Os gastos do SUS com internações de vítimas de sinistros de motocicletas saltaram de R$ 41 milhões em 1998 para R$ 273 milhões em 2024. Cerca de 60% dos gastos totais do SUS com internações provenientes de sinistros de trânsito se referiram às vítimas de motocicletas, cuja frota representa cerca de 30% do total de veículos motorizados.
O Ipea também confirma que o perfil das vítimas de sinistros de motocicleta é predominantemente masculino (89% das mortes), jovem, pardo e de baixa ou média escolaridade. Cerca de um terço das mortes e internações (35,4% e 35,7%, respectivamente) refere-se a jovens entre 20 e 29 anos e pouco mais da metade das vítimas fatais (53,61%) possui ensino fundamental incompleto (considerando registros ajustados).
O alto percentual de vítimas de baixa escolaridade e de pessoas pardas (53% das mortes e 69% das internações) demonstra que o impacto dos sinistros de moto atinge principalmente os estratos sociais mais baixos. “É importante o País se perguntar se temos cultura e letramento para o uso de um veículo tão perigoso e que exige muito mais do que habilidade de condução como é a motocicleta. Como médico, faço parte do sistema de saúde que está lidando com o grande número de vítimas das duas rodas e deixo essa reflexão para a sociedade brasileira”, afirmou Marcelo Pessôa, coordenador médico do Centro de Trauma Heat (Hospital Estadual Alberto Torres), referência em atendimento a pacientes com múltiplos traumas, localizado em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, e que também participou como debatedor durante a apresentação do estudo do Ipea.
MOTOTÁXI PREDOMINA NO NORDESTE
A invisibilidade das vítimas das motos ainda persistente no Brasil é reflexo não só da baixa escolaridade e renda, mas também das regiões do País onde o serviço de aplicativos está mais presente. O Ipea aponta que 49,5% dos municípios brasileiros já contavam com serviços de mototáxi em 2020, sendo que o maior percentual de ocorrência estava nas regiões Nordeste (78,7%) e Norte (73,1%).
Além disso, em 67,9% dos municípios com mototáxi, não havia a existência simultânea de transporte público coletivo, indicando que a ausência de transporte adequado cria um ambiente para o desenvolvimento de serviços mais perigosos.
REGULAMENTAR O SERVIÇO NÃO VAI REDUZIR OS SINISTROS DE TRÂNSITO COM OCUPANTES DE MOTOS
Diante do cenário exposto na Nota Técnica, o Ipea conclui que a sinistralidade de motociclistas é o grande entrave para que o Brasil alcance as metas globais de redução em 50% da mortalidade no trânsito até 2030.
Por isso, a principal recomendação é pela não regulamentação dos serviços de mototáxi no Brasil. E que o País atue em duas frentes imediatamente: promova ações de mitigação das externalidades negativas do transporte sobre duas rodas e oferte alternativas seguras de mobilidade.
Para solidificar a compreensão do risco, os pesquisadores afirmam no estudo que a tentativa de regulamentar o mototáxi no Brasil, na esperança de controlar a sinistralidade, é como tentar "colocar um capacete em uma bolha de sabão".
Confira algumas das recomendações do Ipea para reduzir o uso de motocicletas no descolamento da população:
- Investimentos em segurança viária: É essencial realizar investimentos significativos e permanentes em infraestrutura de segurança, engenharia de tráfego, e estruturas de gestão e fiscalização de transporte.
- Educação contínua: Deve haver campanhas educativas massivas e contínuas, focadas nos riscos específicos da pilotagem de motos, utilizando recursos como o Fundo Nacional de Segurança e Educação de Trânsito (Funset).
Confira a Nota Técnica do Ipea na íntegra:
Pub Expressa - 236896 - NT Dirur 57 - Mortalidade e Morbidade Das Motocicletas... by Roberta Soares
- Alternativas de transporte em cidades menores: Em vez de mototáxi, as prefeituras de cidades menores devem focar em oferecer serviços de transporte público atrativos, utilizando veículos coletivos de menor capacidade (vans e micro-ônibus), associados a serviços de táxis ou aplicativos por automóveis.
- Melhoria do transporte público em grandes cidades: Nas grandes cidades, o foco deve ser a melhoria e o barateamento do transporte público coletivo, além da otimização dos serviços de táxis e aplicativos de automóveis.
- Compensação de custos do SUS: É prioritária a criação de fontes de financiamento estáveis para custear os atendimentos médicos de vítimas de trânsito pelo SUS, sugerindo o reestabelecimento de fontes antigas, como os repasses de parte da arrecadação do antigo seguro DPVAT.
- Exceções para operação do transporte com motos: Em casos muito excepcionais, como em comunidades, morros ou favelas com infraestrutura inadequada para sistemas tradicionais, pode-se admitir a existência limitada de mototáxi, mas com forte fiscalização e controle do poder público local para evitar a expansão do serviço.