Saulo Moreira: 'Não é apenas sobre futebol. É sobre Pernambuco'
O Sport virou saco de pancada na Série A, o Náutico há muito vive da memória dos anos 1960 e o Santa Cruz luta para não desaparecer

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Bem, um dia ia acontecer. Noite de quarta-feira, gol do Corinthians ou do Flamengo, sei lá, e eis que, da varanda de casa, escuto um burburinho nas ruas do Recife. Seriam turistas? Acho que não.
Logo no Recife, que, bairrista que só, se orgulhava de torcer apenas para Sport, Santa Cruz ou Náutico. Não faz muito tempo, a gente mangava de capitais nordestinas cujos torcedores preferem times de outras plagas.
Por que ia acontecer? Porque o poder financeiro quase sempre vence. Empresas grandes compram empresas pequenas, marcas gigantes engolem marcas locais. Não seria diferente com o futebol.
Dinheiro traz bons jogadores, que integram bons times, que aparecem na TV, que ganham títulos e que dão alegria a suas torcidas. E alegria, lembremos, sempre foi um ativo cobiçado, sobretudo em momentos históricos sombrios e de pura estranheza, como o atual. A arte não me deixa mentir.
Endorfina e serotonina para encarar as desditas do dia a dia. Todos querem.
Felicidade e esperança a cada jogo
O futebol oferece felicidade e esperança. Uma simples vitória, o peito estufado, o sorriso no rosto do filho, o abraço num desconhecido, a cerveja, o meme e a estratégia de perturbar o colega de trabalho no dia seguinte. É alívio, trago e respiro em meio a emprego precário, violência urbana e falta de futuro. Vida, enfim.
Num cenário em que todos clamam por uma pausa que traga um breve contentamento, quem, em sã consciência, porém, vai querer torcer para times que, afinal, não enchem mais o coração de alegria? O recifense, talvez.
Trio de ferro hoje é uma piada
Mas o trio de ferro, contudo, hoje, é uma piada. O Sport virou saco de pancada, o Náutico há muito vive da memória dos anos 1960 e o Santa luta para não desaparecer.
Em menor ou maior escala, são três clubes capengas de um estado que já foi líder no Nordeste e outrora encarava os grandes do Sudeste de igual para igual.
Mas o recifense, forjado nas lutas históricas e revoluções liberais, claro, resiste bravamente à invasão. Será?
Cada vez mais símbolos de times de outras terras
Cada vez mais vejo camisetas de times de fora em nossas ruas. É como se nossa reserva de orgulho e grandeza histórica se esvaísse por entre furos criados pelo desejo de vencer, de ser campeão de alguma coisa que seja.
Os times locais não colaboram, e os de fora nos bombardeiam sistematicamente com suas glórias. É uma concorrência desleal. Resultados positivos poderiam fazer frente à invasão, mas há muito não os vemos.
Coloque nessa conjuntura jovens e adolescentes obcecados pelo curtíssimo prazo e com smartphones nas mãos, e teremos uma ameaça real de descaracterização cultural.
Num mundo hiperconectado e com tanta informação a todo momento, qual o problema de se engraçar por um time de futebol que está a milhares de quilômetros de nossa casa? Nenhum.
Cada um é livre para ser feliz como quiser. Mas que a identidade de um povo sofre quando a cultura local sucumbe ao poder que vem de fora, disso não há dúvida.
Como o futebol explica o mundo
Em Como o Futebol Explica o Mundo, de 2005, o escritor estadunidense Franklin Foer aponta a relação entre o esporte mais popular do planeta e questões históricas, políticas, religiosas e culturais de vários países.
Na Escócia, por exemplo, católico é Celtic; protestante, Glasgow Rangers. Na Rússia, o Spartak Moscou ainda hoje é associado à luta contra a ditadura stalinista. Na Espanha, uma vitória do catalão Barcelona sobre o Real Madrid é como um soco na monarquia do país.
Por falar em monarquia, os rivais Liverpool e Everton, ambos com viés progressista, não estão nem aí para a Coroa Britânica, diferentemente dos londrinos Chelsea e West Ham e do Aston Villa, de Birmingham, queridinhos da família real.
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Liverpool e Everton também se unem historicamente pelo sentimento negativo em relação a Margaret Thatcher, primeira-ministra conservadora do Reino Unido entre 1979 e 1990.
Já na Alemanha, um time chamado St. Pauli é conhecido por defender operários, prostitutas, gays e levantar a bandeira antifascista. Já a Lazio, da Itália, é o contrário: parte de sua torcida entoa cânticos exaltando o ditador fascista Benito Mussolini.
Tudo é política, tudo é história. Rivalidade, simpatias, antipatias, convergências e divergências, alianças e distanciamentos ultrapassam as fronteiras da bola numa demonstração inequívoca de que o futebol não é apenas um jogo.
Cada um dos três é um símbolo de cultural
No Recife, Sport, Náutico e Santa Cruz têm, cada um, seu perfil, sua identidade, suas aspirações. Do ponto de vista socioeconômico e político, entretanto, as torcidas não diferem muito umas das outras. Como, de resto, acontece em todo o Brasil.
Porém, as camisas do Leão, do Timbu e da Cobra Coral guardam, em sua história, muito do sentimento do povo pernambucano e recifense. Os três times, como o frevo, o maracatu, o Carnaval, o Rio Capibaribe, o brega, o bolo de rolo, o cuscuz com charque, o mercado da Boa Vista e o ônibus Rio Doce–CDU, são símbolos de um povo.
E, cada vez que um símbolo se torna frágil e decadente, o pertencimento perde força. Como não existe vácuo de poder, o enfraquecimento contínuo do futebol pernambucano nos últimos anos é uma porta aberta para o domínio de outras culturas e valores em nossa terra.
E isso é triste, visse?
*Saulo Moreira, jornalista e torcedor do Sport