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Concessão do metrô: Metroviários voltam a reagir contra a iminente concessão do Metrô do Recife à operação privada

Grupo que envolve metroviários e especialistas do transporte sobre trilhos alerta que está acontecendo um desmonte silencioso da CBTU

Por Roberta Soares Publicado em 11/08/2025 às 11:04

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Os metroviários voltaram a reagir contra a concessão pública do Metrô do Recife, a cada dia mais e mais evidente, já tendo até mesmo previsão para ser anunciada. O Movimento Articulação Metroviária, grupo composto por metroviários, pesquisadores e profissionais do setor de transporte sobre trilhos, alerta que o sistema metropolitano - que atende a 160 mil pessoas no Grande Recife, mas definha sem infraestrutura - está em uma encruzilhada colocado pelo governo federal.

Em um artigo, como o grupo recém criado vem se posicionando, o movimento alerta que a Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), responsável há quatro décadas pela operação de metrôs e VLTs em diversas capitais brasileiras, incluindo o Recife, tem sido sistematicamente invisibilizada e sucateada em discussões cruciais sobre o futuro do setor. Para o movimento, a defesa do transporte sobre trilhos passa necessariamente pelo fortalecimento da CBTU e pela valorização de sua expertise técnica, criticando veementemente a proposta de concessão à iniciativa privada.

A preocupação dos metroviários tem ficado mais evidente com as recentes notícias sobre a concessão do Metrô do Recife, com anúncios previstos já para o mês de setembro. O Movimento Articulação Metroviária adverte que utilizar falhas operacionais – que são, em sua visão, consequência direta da asfixia orçamentária imposta pelo próprio governo federal – como justificativa para desqualificar a gestão pública ou propor a privatização é uma inversão perversa da lógica do planejamento urbano. Eles reforçam que a solução para a mobilidade urbana em trilhos reside em um sistema estatal, acessível, eficiente e com gestão voltada ao interesse coletivo, e não na descontinuidade de um operador público comprovadamente competente.

DAY SANTOS/JC IMAGEM
Os recentes problemas do Metrô do Recife são reflexo da ausência de investimentos que o sistema sofre há quase uma década - DAY SANTOS/JC IMAGEM

Confira o artigo na íntegra:

"A efervescência recente em torno de novos projetos de VLT e metrô para o Recife e sua Região Metropolitana recolocou o transporte sobre trilhos no centro do debate público. No entanto, a forma como bancos de fomento e órgãos governamentais vêm conduzindo esse processo evidencia uma incoerência perigosa: a Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), responsável há quase quatro décadas pelo metrô do Recife e pelo VLT que atende à Região Metropolitana, tem sido relegada a mera espectadora em discussões que deveriam valorizar sua experiência técnica e histórica.

A falência do planejamento nacional em mobilidade urbana

Durante décadas, o Brasil contou com um ente estruturado para articular o planejamento do transporte público em nível nacional. Criado em 1965, o Grupo Executivo para a Integração da Política de Transportes (GEIPOT) tinha como missão apoiar o governo federal na formulação de políticas integradas de transporte.

Em 1973, transformou-se na Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes, assumindo um papel central na elaboração de planos estratégicos, como o PAITT (Plano de Ação Imediata em Transporte e Trânsito), o Trancol (Plano Nacional de Transporte Coletivo Urbano) – marco inicial de uma política federal voltada ao transporte coletivo nas cidades – e o Plano Diretor de Transportes Urbanos (PDTU), que orientou o ordenamento do setor por anos.

Paralelamente, foi criada em 1975 a Empresa Brasileira de Transportes Urbanos (EBTU), encarregada de gerir os recursos do Fundo de Desenvolvimento dos Transportes Urbanos (FTDU). A EBTU tinha papel técnico e financeiro relevante: coordenava planos diretores de transporte urbano, elaborava e avaliava projetos em parceria com estados e municípios, e atuava na implantação de sistemas de mobilidade com forte presença federal. Esse arranjo institucional, que assegurava articulação técnica e apoio financeiro da União, foi desmantelado ao longo dos anos 1990.

A Constituição de 1988 transferiu aos municípios a responsabilidade pelo transporte urbano – medida que, embora coerente com os princípios da descentralização administrativa, mostrou-se desastrosa na prática. A maioria dos municípios não possui estrutura técnica, nem capacidade institucional para planejar, gerir e, especialmente, operar sistemas complexos como os de transporte metroferroviário de passageiros. Essa lacuna ficou ainda mais evidente diante da ausência de apoio federativo coordenado.

Em 1990, o governo Collor promoveu uma ampla extinção de estatais e, entre elas, liquidou a EBTU no ano seguinte. O GEIPOT, por sua vez, foi enfraquecido ao ser transferido para o Ministério do Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente, em 1985, perdendo foco e protagonismo até sua extinção definitiva em 2001. Com a saída de cena desses dois pilares do planejamento nacional, o Sistema Nacional de Transportes Urbanos tornou-se acéfalo.

ALEXANDRE GONDIM/JC IMAGEM
A preocupação dos metroviários tem ficado mais evidente com as recentes notícias sobre a concessão do Metrô do Recife, com anúncios previstos já para o mês de setembro - ALEXANDRE GONDIM/JC IMAGEM

Suas atribuições foram pulverizadas entre diferentes órgãos, sem um comando único, visão integrada ou capacidade estruturante. Desde então, o país carece de um ente federal com missão clara e autoridade técnica para planejar a mobilidade urbana. A ausência de uma política nacional de transporte coletivo tem aprofundado desigualdades, comprometido a eficiência dos sistemas e deixado as cidades à mercê de soluções fragmentadas e desarticuladas – principalmente em relação aos modais de média e alta capacidade, como trens metropolitanos, metrôs e VLTs.

A trajetória da CBTU e a construção do Metrorec

Desde sua criação, a CBTU tem atuado em diversas capitais brasileiras, operando e expandindo sistemas metroferroviários com reconhecida competência técnica. No Recife, a companhia foi responsável por importantes marcos operacionais e estruturais, como a eletrificação da Linha Sul, a implantação do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) na chamada Linha Diesel, a expansão da rede até Cajueiro Seco e Camaragibe, além da incorporação de novos VLTs em 2011 e da aquisição de trens espanhóis em 2012.

Essas ações demonstram não apenas sua capacidade de execução, mas também seu papel estratégico na consolidação do transporte sobre trilhos na região metropolitana. Contudo, nos últimos anos, a CBTU tem sido alvo de um processo sistemático de desmonte institucional e financeiro, conduzido pelo governo federal.

A descentralização de sistemas, a redução progressiva dos investimentos e os sucessivos cortes orçamentários impuseram à empresa um cenário de subfinanciamento crônico, que compromete severamente a manutenção da infraestrutura, a renovação da frota e a continuidade de serviços essenciais.
Forçada a operar com recursos de custeio muito aquém das suas necessidades reais, a Companhia passou a enfrentar dificuldades crescentes para adquirir peças, contratar serviços especializados e manter o mínimo de regularidade operacional. Esse quadro é particularmente visível no Metrô do Recife, que tem sofrido com falhas operacionais recorrentes, paralisações e restrições técnicas.

No entanto, é essencial destacar que esses problemas não decorrem de deficiência técnica da CBTU, mas sim da asfixia orçamentária deliberadamente imposta ao longo da última década. A empresa mantém um quadro técnico qualificado e já demonstrou, reiteradas vezes, sua competência na implantação, modernização e operação de sistemas metroferroviários.

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O sistema metropolitano segue sem recursos, com um déficit de custeio de quase 50% do orçamento, o que gera quebras e panes técnicas frequentes - DAY SANTOS/JC IMAGEM

Apesar disso, em matéria recente veiculada pelo NE2, da TV Globo, foi informado que o BNDES teria classificado o desempenho do Metrorec como abaixo do ideal. Essa avaliação, completamente descolada da realidade orçamentária e institucional enfrentada pela CBTU, revela não apenas desconhecimento técnico e político, mas também uma alarmante insensibilidade em relação ao processo de desmonte promovido pelo próprio governo federal. Utilizar falhas operacionais — que são consequência direta da negligência e do sucateamento promovido pelo ente que deveria garantir a continuidade do serviço — como argumento para propor a substituição do metrô por modais de menor capacidade, como BRTs e Monotrilhos em trechos estratégicos, é uma inversão perversa da lógica do planejamento urbano.

Demonstra que os responsáveis por estruturar projetos de mobilidade na região não compreendem que a escolha do modal deve ser orientada por critérios técnicos, como a demanda real de passageiros, a capacidade de transporte, a integração territorial e as necessidades estruturais de longo prazo da cidade — e não por julgamentos superficiais sobre um sistema que vem sendo sistematicamente enfraquecido pela própria União.

É preciso afirmar com clareza: os problemas enfrentados pelo Metrorec são resultado direto da omissão federativa e da política de enfraquecimento institucional da CBTU — e não de falhas técnicas ou de gestão da Companhia. Tratar os sintomas do desmonte como se fossem justificativas para sua desqualificação pública ou para sua privatização é uma estratégia equivocada, que fragiliza o debate sobre mobilidade urbana e compromete a construção de soluções estruturantes, sustentáveis e duradouras para as cidades brasileiras.

A exclusão da CBTU nos debates recentes

Em 2025, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) apresentou um conjunto de propostas para a reestruturação da mobilidade urbana sobre trilhos na Região Metropolitana do Recife, estimando investimentos da ordem de R$ 12 bilhões. O plano contempla 18 soluções de mobilidade, incluindo corredores estratégicos com previsão de implantação de Veículos Leves sobre Trilhos (VLTs).

No entanto, muitas dessas propostas já haviam sido estudadas e defendidas por técnicos da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU) ao longo das últimas décadas. Ainda em 2013, o então gerente de manutenção do Metrorec, Bartolomeu Carvalho, lamentava publicamente que os projetos para implantação de VLTs nas avenidas Caxangá, Agamenon Magalhães e BR101 tivessem sido engavetados porque, segundo ele, “a opção rodoviária prevaleceu”.

Agora, mais de uma década depois, as mesmas ideias ressurgem nos estudos do BNDES — porém sem qualquer reconhecimento ao papel histórico da CBTU, nem à sua comprovada experiência na operação de sistemas sobre trilhos. Ao contrário: os projetos são reiteradamente associados à necessidade de concessão à iniciativa privada, como se a gestão pública, por princípio, fosse um entrave à eficiência.

Esse processo de invisibilização institucional não se restringe ao Recife. O Ministério dos Transportes tem divulgado projetos de VLT em Campina Grande (PB), Arapiraca (AL) e Valparaíso (GO) como se fossem iniciativas próprias, apesar de todos terem sido concebidos internamente pela CBTU, com base em estudos técnicos, conhecimento acumulado e atuação concreta nos territórios.

ALEXANDRE GONDIM/JC IMAGEM
Linha sul do Metrô do Recife da CBTU. - ALEXANDRE GONDIM/JC IMAGEM

Em um episódio simbólico dessa tentativa de apagamento, o Ministro dos Transportes, Renan Filho, chegou a anunciar publicamente o “primeiro VLT da Paraíba”, ignorando completamente a existência da CBTU — que opera há décadas o sistema de trens urbanos na Região Metropolitana de João Pessoa.

Simultaneamente, o governo federal autorizou, em maio de 2025, a concessão do metrô do Recife à iniciativa privada, com previsão de leilão até 2026. Essa decisão representa mais um capítulo da política deliberada de retirada da CBTU do cenário da mobilidade urbana nacional — uma política que ignora sua capacidade técnica, sua história e sua função pública.

Mais grave ainda é o fato de que a Transnordestina Logística S.A. (FTLSA), concessionária que abandonou quase toda a malha ferroviária do Nordeste, esteja sendo considerada como futura operadora do VLT de Campina Grande. Trata-se de um verdadeiro contrassenso: a mesma empresa que deixou de operar trechos estratégicos, não restaurou linhas após enchentes e solicitou a devolução de ativos aos estados, agora é indicada para assumir um novo serviço de transporte público de passageiros — justamente em áreas que ela própria contribuiu para deixar sem trens.

Essa escolha beira o absurdo e demonstra que critérios técnicos vêm sendo preteridos por interesses político-econômicos. O caso remete diretamente aos erros da década de 1990, quando a Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA) foi privatizada. Os ramais Nordeste, como os trechos Recife–Salgueiro (ramal Centro) e Recife–Alagoas (ramal Sul), foram concedidos à FTLSA e logo depois abandonados.

Em 2013, o último trem de passageiros a circular parcialmente por esses percursos foi justamente da CBTU, que enfrentou sérias dificuldades devido à ausência de manutenção nas vias. O engenheiro e professor aposentado da UFPE, Maurício Pina, alerta: “A concessão destruiu a malha ferroviária do Nordeste. Em Pernambuco há anos não circula um trem sequer de carga. Por um tempo ainda havia o Trem do Forró, mas após um descarrilamento, nem isso mais. Casas e até praças foram construídas sobre a linha do trem, foram roubados quilômetros de trilhos.” (Revista AlgoMais, 2023).

Além disso, ele aponta que, dos 4.238 km de malha ferroviária assumidos pela concessionária, apenas 2.750 km permaneciam operacionais dois anos após a concessão — evidenciando o abandono acelerado da infraestrutura. A empresa suspendeu operações, não recuperou trechos afetados por eventos climáticos e, hoje, tenta devolver linhas inteiras aos estados.

Esse histórico reforça um alerta essencial: privatizações mal estruturadas não asseguram modernização e, muitas vezes, resultam no colapso do serviço público. Ignorar a CBTU — única operadora pública nacional com quatro décadas de atuação ininterrupta em sistemas metroferroviários — não é apenas um erro técnico. É uma decisão política com efeitos profundos, que compromete a construção de soluções estruturantes, sustentáveis e de longo prazo para o transporte urbano no Brasil.

O caso Recife–Caruaru e o apagamento da CBTU

Em 22 de julho de 2025, a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) anunciou a assinatura de um convênio com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) para estudar a reativação do trem de passageiros entre Recife e Caruaru. A proposta prevê a análise da infraestrutura ferroviária existente, com cerca de 120 km de extensão, para verificar se será possível readequá-la ou se uma nova linha será necessária.

O próprio superintendente da Sudene, Danilo Cabral, reconheceu que esse trecho, antes parte da malha federal, foi esvaziado e abandonado após a privatização da RFFSA — e agora exigirá novo aporte estatal para voltar a operar. Embora a reativação da linha seja positiva e de grande potencial estratégico, mais uma vez a CBTU foi ignorada. Trata-se de uma empresa pública com capacidade técnica, experiência acumulada e presença operacional consolidada, apta a colaborar com o estudo e, futuramente, operar o novo serviço.
Ao manter a companhia à margem dessas decisões, o governo desperdiça uma estrutura já existente, que poderia agregar conhecimento, reduzir custos e garantir continuidade institucional à política ferroviária nacional.

Reconhecer quem constrói os trilhos

O Movimento Articulação Metroviária reitera: a defesa do transporte sobre trilhos como solução de mobilidade passa necessariamente pelo fortalecimento da CBTU. Quando EBTU e GEIPOT existiam, havia planejamento e coordenação; sua extinção entregou o transporte urbano à fragmentação.

A CBTU, sobrevivente dessa desmontagem, modernizou sistemas, eletrificou linhas e mantém em funcionamento trens urbanos que transportam centenas de milhares de pessoas todos os dias. Apesar disso, sofre com políticas de sucateamento, orçamentos de custeio insuficientes e ameaças de privatização. Ao anunciar novos VLTs, linhas de metrô ou reativação de ferrovia, os governos e bancos públicos precisam reconhecer a expertise da companhia.

Planejar sem a CBTU é desperdiçar conhecimento e repetir erros da história. Nós, do movimento de articulação metroviária, não reivindicamos vaidade; exigimos respeito institucional e participação. Sem uma entidade técnica e pública como a CBTU no centro das decisões, a mobilidade por trilhos corre o risco de continuar sendo tratada como peça de marketing ou moeda de negociação política, quando deveria ser um instrumento de desenvolvimento e justiça social.

Este artigo foi elaborado pelo Movimento Articulação Metroviária, uma iniciativa composta por metroviários, pesquisadores, profissionais do setor de transportes e apoiadores da mobilidade urbana pública e de qualidade. O grupo atua de forma colaborativa e suprapartidária, promovendo o debate técnico e político sobre o futuro do transporte sobre trilhos no Brasil.

Defende o fortalecimento da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), a valorização de seu corpo técnico e a preservação do transporte metroferroviário como um serviço público essencial. O Movimento é contra a privatização do metrô e luta pela construção de um sistema de mobilidade urbana estatal, acessível, eficiente e com gestão voltada ao interesse coletivo.

A articulação também conta com o apoio de usuários do sistema, de vereadores do Recife e de outras cidades da Região Metropolitana, além de deputados comprometidos com a defesa do transporte público de qualidade e com o fortalecimento das políticas públicas para a mobilidade urbana sobre trilhos."

 

 

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