Edital de Medicina da UFPE para assentados da reforma agrária é alvo de mais uma ação judicial

Ex-desembargador Francisco Queiroz questiona processo seletivo e afirma que curso fere isonomia. Na peça, ele ataca o reitor Alfredo Gomes.

Por Rodrigo Fernandes Publicado em 30/09/2025 às 12:48 | Atualizado em 30/09/2025 às 12:53

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O edital para o processo seletivo do curso de Medicina do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), ofertado pelo campus Caruaru da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), se tornou alvo de mais uma ação judicial de contestação.

Desta vez, o ex-desembargador Francisco Queiroz ingressou na Justiça Federal pedindo a suspensão imediata do certame, que destina vagas para assentados da reforma agrária e outros públicos específicos. A ação tramita na 9ª Vara Federal de Pernambuco.

O curso foi viabilizado a partir de uma parceria entre o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a UFPE., abrindo 80 vagas para ingresso no curso de graduação em Medicina, sendo 40 de ampla concorrência e outras 40 destinadas a candidatos beneficiados por cotas.

Segundo as regras, poderiam se candidatar assentados e familiares beneficiários do Crédito Fundiário, egressos de cursos promovidos pelo Incra, educadores que atuam junto a essas comunidades, acampados cadastrados e pessoas quilombolas. As aulas serão presenciais no Centro Acadêmico do Agreste, em Caruaru, com início previsto para 20 de outubro de 2025.

Na ação, o ex-desembargador sustenta que o universo de beneficiários contemplados no edital não guarda relação com a formação em Medicina. Ele critica ainda o tema da redação exigida como forma de ingresso no curso, por ser “alheio ao programa do Enem e do Sisu”.

ANDRE NERY /ACERVO JC IMAGEM
Francisco Queiroz, ex-desembargador e ex-diretor da Faculdade de Direito do Recife - ANDRE NERY /ACERVO JC IMAGEM

Segundo Queiroz, o edital inclui como potenciais candidatos até mesmo professores temporários contratados por entidades públicas parceiras do projeto, ainda que sem qualquer vínculo com a área médica ou da saúde, o que, na visão dele, configuraria uma “verdadeira ação entre amigos”.

O magistrado aposentado anexou ao processo o posicionamento contrário de entidades médicas pernambucanas sobre o edital. Ainda na peça, ele argumenta que princípios constitucionais como moralidade e impessoalidade foram “mutilados”, além da violação das normas de vinculação de motivos e da economicidade.

Na petição, obtida pelo Jornal do Commercio, Queiroz cita nominalmente o reitor da UFPE, Alfredo Gomes, que recentemente defendeu o edital em entrevistas à Rádio Jornal e ao JC. Para o desembargador, entretanto, a defesa da universidade está repleta de “equívocos”.

“Os cursos patrocinados pelo Pronera são, em princípio, voltados para a atividade de campo e não deveriam ser restritos a um público específico como exclusivamente de assentados, olvidando até os demais trabalhadores rurais e pobres das cidades, como os boias-frias. Afinal, a receita destinada a esses gastos é pública, não cabendo ao reitor escolher o público a seu bel-prazer”, sustenta.

O ex-desembargador também questiona a explicação de que não se trata de um novo curso, mas de uma “turma especial”, classificando a medida como irregular e prejudicial aos estudantes que aguardam vaga pelo ingresso regular em Medicina.

Queiroz acusa o reitor de manter “postura mais próxima de pré-candidato às próximas eleições" e afirma que ele "tenta justificar o injustificável, com argumentos desconexos, e juridicamente inaceitáveis”.

Questões técnicas

Entre os pontos levantados na ação por Francisco Queiroz, estão críticas à estrutura do campus de Caruaru, que, segundo ele, não teria condições de receber mais de 80 novos alunos em Medicina sem avaliação prévia dos órgãos especializados, contratação adequada de professores e sem comprometer o nível do ensino.

Ele também critica a previsão de vagas para quilombolas, afirmando que esse público já é alcançado pelo regime de cotas da universidade. Na conclusão da peça, Queiroz afirma que o edital fere os princípios da isonomia, da impessoalidade e da moralidade.

“O que se verifica, em resumo, tratar-se de uma tentativa de utilização de uma universidade pública para atender conveniências e aspirações pessoais, em detrimento de princípios como da moralidade e da isonomia. Esse caso é tão lamentável quanto a ‘PEC da Blindagem’”, escreveu na peça.

O autor da ação pede a suspensão imediata do edital, sob alegação de que a continuidade do processo “causará prejuízo irreparável aos cofres públicos e grave e imediata violação dos princípios constitucionais aplicáveis”. O ex-desembargador requer ainda que o reitor Alfredo Gomes e outras testemunhas sejam convocados a prestar depoimento.

O que diz a UFPE

Procurada pela reportagem, a Universidade Federal de Pernambuco informou que o reitor Alfredo Gomes não vai se manifestar sobre a ação judicial e as acusações feitas por Francisco Queiroz.

Na semana passada, Alfredo Gomes defendeu a realização dos cursos. "Esses cursos são voltados aos assentados, em sentido mais amplo — jovens e adultos beneficiados pelo Pronera e que vivem em assentamentos do Incra, crédito fundiário. Isso extrapola a dimensão colocada, sendo destinado a educadores, educadoras, famílias, egressos em cursos de especialização do Incra", afirmou em entrevista ao programa Passando a Limpo, da Rádio Jornal.

Ainda de acordo com Alfredo Gomes, apesar das críticas de entidades médicas e políticos, a iniciativa é considerada uma política de reparação para combater as desigualdades educacionais e profissionais.

"É mais amplo do que aquilo que, muitas vezes, vem a público de forma oportunista e com desinformação em torno da pauta das universidades que prestam serviço à sociedade. Outras universidades também ofertam. Mas, como se trata de Medicina, que é um curso que mexe com instituições poderosas na sociedade, surge essa polêmica", disparou.

Em nota enviada ao JC na semana passada, a Universidade Federal de Pernambuco afirmou que a proposta de criação de uma turma extra de graduação em Medicina, será ofertada através de vagas supranumerárias, tendo sido aprovada pelo Conselho Superior da UFPE.

"É fundamental ressaltar que essas vagas são específicas de uma Turma Extra que foi criada exclusivamente para esse fim, dentro da autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial prevista no Artigo 207 da Constituição federal e não afetam as vagas já oferecidas regularmente pela UFPE por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu). A criação desta turma especial não interfere na distribuição regular de vagas da universidade que já existe fluxo de funcionamento definido na instituição via SISU", disse a instituição.

"A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) reforça a autonomia universitária para definir o número de vagas, incluindo a abertura de vagas supranumerárias, especialmente quando destinadas a políticas públicas específicas. Ainda, o MEC, por meio de notas técnicas e pareceres do Conselho Nacional de Educação (CNE), também reconhece a legitimidade da criação de vagas supranumerárias, especialmente quando associadas a políticas afirmativas e inclusão social", acrescentou a universidade.

Outras duas ações judiciais

Antes do desembargador Francisco Queiroz, o edital já havia sido questionado judicialmente pelo deputado federal e ex-ministro da Educação Mendonça Filho (União Brasil) e pelo vereador do Recife Thiago Medina (PL).

Mendonça classificou a medida como um "absurdo total" e um "desrespeito" aos demais estudantes que se preparam arduamente para o processo seletivo em busca de uma vaga em uma universidade federal. Ele busca anular a decisão da UFPE.

"A gente não pode aceitar de forma alguma que a Educação brasileira seja transformada num palco de oportunismo político-ideológico", afirmou o político, reforçando a necessidade de proteger o princípio da meritocracia e da ampla concorrência nas instituições de ensino superior.

Já Thiago Medina aponta que o edital apresenta vícios graves que comprometem sua validade, violando princípios constitucionais e a própria finalidade do programa.

Entre os pontos questionados está "a ausência de prova escrita idônea, pois o processo seletivo se limita a uma redação e à análise do histórico escolar, sem exames objetivos em áreas como biologia, química e matemática, considerados indispensáveis para ingresso em Medicina."

“A UFPE precisa preservar sua credibilidade. Não podemos aceitar um processo seletivo que visa beneficiar um grupo ideológico. A lei existe para ser cumprida”, declarou Medina, referindo-se aos membros do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

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