Reitor da UFPE sai em defesa de vagas de Medicina para assentados da reforma agrária: não se trata de privilegiar

Apesar das críticas, reitor da UFPE afirma que a iniciativa é uma política de reparação para combater as desigualdades educacionais e profissionais

Por Mirella Araújo Publicado em 25/09/2025 às 14:05 | Atualizado em 25/09/2025 às 14:13

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 Após reação de entidades médicas de Pernambuco à abertura do processo seletivo para o curso de graduação em Medicina oferecido por meio do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) — que existe há 27 anos e já apoiou mais de 545 cursos de formação em todo o país —, o reitor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)Alfredo Gomes, esclareceu que não se trata da criação de um novo curso, mas de uma turma única, financiada com recursos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

"Ele [o Pronera] oferece cursos em todas as instituições de ensino superior que se candidatam a essa parceria. Hoje temos 27 cursos de graduação dentro do Pronera, nas cinco regiões do país, desde Engenharia Sanitária, Pedagogia, Veterinária, Zootecnia, Agronomia, entre outras áreas credenciadas que ofertam essa iniciativa", disse Alfredo Gomes. 

Durante participação no programa Passando a Limpo, da Rádio Jornal, nesta quinta-feira (25), o reitor reforçou que a criação de 80 vagas para uma turma extra no Centro Acadêmico do Agreste da UFPE, no Campus Caruaru, não é exclusiva para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), mas sim destinada a um grupo mais amplo de assentados e acampados reconhecidos pelo Incra, além de quilombolas.

Segundo Gomes, há no Brasil aproximadamente 180 mil assentados. "Esses cursos são voltados aos assentados, em sentido mais amplo — jovens e adultos beneficiados pelo Pronera e que vivem em assentamentos do Incra, crédito fundiário. Isso extrapola a dimensão colocada, sendo destinado a educadores, educadoras, famílias, egressos em cursos de especialização do Incra", afirmou.

A abertura do edital de Medicina por meio do Pronera é uma iniciativa inédita no país. Das 80 vagas ofertadas, 40 são de ampla concorrência e 40 destinadas a candidatos contemplados por ações afirmativas (cotas), que só foram viabilizadas devido aos recursos disponibilizados pelo Incra.

As inscrições ocorreram de 10 a 20 de setembro, voltadas para candidatos assentados da reforma agrária e integrantes de famílias beneficiárias do Crédito Fundiário; educandos egressos de cursos de especialização promovidos pelo Incra; educadores que exerçam atividades voltadas às famílias beneficiárias; acampados cadastrados pelo instituto e quilombolas.

"É mais amplo do que aquilo que, muitas vezes, vem a público de forma oportunista e com desinformação em torno da pauta das universidades que prestam serviço à sociedade. Outras universidades também ofertam. Mas, como se trata de Medicina, que é um curso que mexe com instituições poderosas na sociedade, surge essa polêmica", disparou. 

Ainda de acordo com Alfredo Gomes, apesar das críticas de entidades médicas e políticos, a iniciativa é considerada uma política de reparação para combater as desigualdades educacionais e profissionais.

Entidades criticam processo seletivo sem Enem e Sisu

Em nota divulgada na última segunda-feira (22), entidades médicas de Pernambuco — representadas pelo Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe), Sindicato dos Médicos de Pernambuco (Simepe), Associação Médica de Pernambuco (AMPE) e Academia Pernambucana de Medicina (APM) — criticaram a criação de um processo seletivo exclusivo para o curso de Medicina, paralelo ao sistema nacional.

Segundo o comunicado, “a criação de um processo seletivo exclusivo, paralelo ao sistema nacional, sem utilização do Enem e do Sisu como critérios de acesso, afronta os princípios da isonomia e do acesso universal, além de comprometer a credibilidade acadêmica e representar um precedente grave e perigoso para a educação médica no Brasil.”

Para participar do processo seletivo, os candidatos devem ter concluído o Ensino Médio antes da inscrição e apresentar a documentação exigida que comprove o vínculo com o programa.

A avaliação segue os critérios estabelecidos no item 9 do edital e está dividida em duas etapas eliminatórias. A primeira é a Inscrição e Validação de Beneficiário, na qual a comissão do Incra analisa os documentos enviados para verificar se o candidato pertence ao público-alvo do Pronera. A ausência de comprovação ou o envio de documentos falsos resulta na eliminação imediata.

A segunda etapa é composta por duas avaliações, de caráter eliminatório e classificatório, com pesos distintos. A Prova Presencial de Redação em Língua Portuguesa, com peso 6, segue os critérios da Portaria MEC nº 391/2000. Trata-se de um texto dissertativo-argumentativo, avaliado com base em critérios objetivos como adequação ao tema, organização das ideias, domínio da norma culta e uso apropriado do vocabulário. A nota mínima exigida para não eliminação é 5,0 (em uma escala de 0 a 10).

Já a Avaliação do Histórico Escolar do Ensino Médio, com peso 4, considera as notas de Língua Portuguesa, Biologia e Química do 1º, 2º e 3º anos. A média aritmética simples dessas notas é multiplicada pelo peso, compondo a pontuação final do candidato.

"'Quando há uma turma como essa, é preciso passar por processo seletivo. No caso, não é o Enem que dá acesso. O processo de ingresso é diferente: a seleção é baseada em uma redação e no histórico do Ensino Médio das pessoas. Faz-se uma média ponderada entre todos os candidatos distribuídos no Brasil", explicou Alfredo Gomes, reforçando que as vagas disponibilizadas não substituem as que já são ofertadas pela universidade. 

"Há um esforço docente em abrir vagas extras, assim como de técnicos administrativos, para que a gente honre a parceria com o Incra/Pronera e oferte a oportunidade de pessoas assentadas estudarem", completou. 

 

Divulgação/UFPE
Prédio do curso de Medicina, do Núcleo de Ciências da Vida (NCV), situado no Centro Acadêmico do Agreste da Universidade Federal de Pernambuco (CAA-UFPE), em Caruaru - Divulgação/UFPE

Defesa pela política de democratização e interiorização

Para o Incra, a criação da turma especial tem como objetivo fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS) no atendimento à população das áreas rurais — um desafio ainda significativo em diversas regiões do país.

No entanto, as críticas em torno das 80 vagas extranumerárias para o curso de Medicina apontam que, diante da existência de Políticas de Ações Afirmativas, como a Lei de Cotas (nº 12.711/2012), já aplicadas nos processos seletivos para ingresso no ensino superior, a não utilização do Enem e do Sisu como critérios de acesso para uma turma específica pode representar uma violação ao princípio da igualdade de oportunidades, além de desconsiderar os mecanismos nacionais já consolidados.

Nesse ponto, o reitor da UFPE Alfredo Gomes explicou que as políticas de democratização do acesso ao ensino superior podem ser compreendidas em três pilares. O primeiro é a interiorização, com a criação de unidades no interior do estado, como os campi de Vitória (Zona da Mata), Caruaru (Agreste) e Sertânia (Sertão), o que permite que estudantes possam estudar próximos de suas famílias e comunidades.

O segundo pilar é a Lei de Cotas, que garante a reserva de vagas em todos os cursos e turnos das universidades e institutos federais, promovendo não apenas o ingresso, mas também a permanência de estudantes historicamente excluídos.

O terceiro eixo envolve as políticas de financiamento estudantil, como o ProUni e o FIES, que oferecem bolsas e crédito para estudantes de baixa renda, ampliando ainda mais as oportunidades de acesso ao ensino superior.

"Nesse caso específico, a gente está falando de um programa que já tem 27 anos, certo? Um programa que vem formando muita gente no Brasil ao longo desse tempo. Mas os cursos oferecidos sempre foram voltados para áreas historicamente menos privilegiadas do ponto de vista das classes sociais e também dos grupos profissionais que têm interesse direto", disse Gomes.

"Então, quando falamos, por exemplo, de cursos como Pedagogia, Geografia, Serviço Social, entre outros, esses grupos nunca se mobilizaram para defender interesses corporativos ou particulares. Pelo contrário, sempre estimularam a participação e o acesso", destacou o reitor.

Ainda segundo Alfredo Gomes, o processo seletivo do Pronera não se trata de privilégio, mas de uma orientação política de estado.  "Agora, no momento em que a Universidade Federal toma a decisão, pioneira, aliás, de ampliar essa iniciativa para um curso como Medicina, começamos a ser atacados. E estamos, sim, sendo atacados por políticos ou por aspirantes a políticos, que vão à mídia tentar manchar uma história de 200 anos de prestação de serviços de muita qualidade ao estado de Pernambuco e ao Brasil, que essa universidade vem realizando", criticou. 

Ampliação dos cursos de Medicina

Dentro do debate sobre a qualidade e a credibilidade dos cursos na área da saúde, em especial a graduação em Medicina, o reitor da UFPE defende que a preocupação com a formação médica deve ser ampla e caminhar na direção oposta à mercantilização da educação.

“Hoje, 80% das vagas em Medicina estão em instituições privadas. Houve um grande crescimento: são 48 mil vagas, segundo dados de 2024. Aqui estamos falando de apenas 80 vagas extras no curso”, destacou.

“Nossos cursos têm a maior avaliação do MEC, conceito 5. Os professores são altamente qualificados. Estamos fazendo uma experiência que vai durar seis anos, e acredito no poder transformador da educação. Essas pessoas serão transformadas pela universidade e sairão qualificadas”, disse, em entrevista ao programa Passando a Limpo.

Atualmente, o curso de Medicina da UFPE no Recife conta com mais de 120 vagas abertas à ampla concorrência. Em Caruaru, são oferecidas outras 80 vagas no curso regular. No próximo ano, está prevista a abertura do novo campus de Sertânia, no Sertão, com mais 40 vagas.

“A população não pode se confundir: trata-se de uma turma extra, vinculada a uma política de 26 anos, criada para combater desigualdades educacionais por meio da educação”, afirmou Gomes.

Como funciona o Pronera

O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) foi instituído por meio da Portaria do Ministério Extraordinário da Política Fundiária (MEPF) n.º 10, de 16 de abril de 1998, a partir da reivindicação de movimentos sociais ligados ao meio rural por um programa de Estado voltado à educação.

A execução do Pronera se dá por meio de parcerias com instituições de ensino públicas e privadas sem fins lucrativos, governos estaduais e municipais.

As formações incluem: alfabetização e escolarização de jovens e adultos no ensino fundamental e médio em áreas de reforma agrária; capacitação e escolarização de educadores para o ensino fundamental em áreas de reforma agrária; formação inicial e continuada de professores sem formação em áreas de reforma agrária; formação de nível médio, concomitante/integrada ou não com ensino profissional; e Curso técnico profissional de nível médio;

Os números do Pronera (1998 a 2024), segundo consta no site do Incra, mostram que já foram ministrados 545 cursos para 192.764 estudantes em todos os estados brasileiros.

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