Edital de Medicina da UFPE para assentados da reforma agrária é alvo de críticas e ação na Justiça
Foram abertas 80 vagas: 40 para ampla concorrência e outras 40 destinadas a candidatos que se enquadram nas modalidades de ações afirmativas (cotas)

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As entidades médicas de Pernambuco — Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe), Sindicato dos Médicos de Pernambuco (Simepe), Associação Médica de Pernambuco (AMPE) e Academia Pernambucana de Medicina (APM) — divulgaram, na noite desta segunda-feira (22), uma nota questionando a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) sobre o processo seletivo para o curso de graduação em Medicina oferecido por meio do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera).
A iniciativa, inédita no país, é fruto de uma parceria entre o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a UFPE. Foram abertas 80 vagas: 40 para ampla concorrência e outras 40 destinadas a candidatos que se enquadram nas modalidades de ações afirmativas (cotas).
Segundo o edital, cujas inscrições se encerraram no último sábado (20), podiam se candidatar assentados da reforma agrária e integrantes de famílias beneficiárias do Crédito Fundiário; educandos egressos de cursos promovidos pelo Incra; educadores que atuam junto às famílias beneficiárias; acampados cadastrados pelo instituto e pessoas quilombolas.
As aulas acontecerão presencialmente no Centro Acadêmico do Agreste da UFPE – Campus Caruaru. O início das atividades está previsto para 20 de outubro de 2025.
Para o Incra, a criação da turma especial tem como objetivo fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS) no atendimento à população das áreas rurais — um desafio ainda significativo em diversas regiões do país.
A oferta de vagas específicas para os assentados da reforma agrária é um dos pleitos reinvidicados pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Mas é importante destacar que as vagas não são destinadas exclusivamente para os membros do MST.
Em 2023, no Rio Grande do Sul, a Universidade Federal de Pelotas (UFPel) chegou a discutir o tema, mas a proposta acabou não sendo implementada. Na epóca, representantes da classe médica afirmaram que o modelo poderia colocar em risco a qualidade da formação dos futuros médicos, conforme matéria publicada pelo Valor Econômico.
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O que dizem as entidades médicas?
Por nota, as entidades se manifestaram contrárias à condução do processo seletivo, afirmando que "a Constituição Federal, em seu artigo 206, assegura a isonomia e a igualdade de condições para o acesso às universidades públicas, princípio que deve nortear todas as formas de ingresso no ensino superior."
"Reconhecemos que há jurisprudência consolidada legitimando políticas afirmativas, desde que aplicadas de forma proporcional, equilibrada e transparente. Ressaltamos, contudo, que a criação de um processo seletivo exclusivo, paralelo ao sistema nacional, sem utilização do Enem e do Sisu como critérios de acesso, afronta os princípios da isonomia e do acesso universal, além de comprometer a credibilidade acadêmica e representar um precedente grave e perigoso para a educação médica no Brasil", destaca o pronunciamento.
As entidades médicas de Pernambuco entendem que o processo seletivo do Pronera "viola a igualdade de oportunidades e desconsidera os mecanismos nacionais já consolidados, que garantem transparência e equidade no ingresso ao ensino superior."
Por fim, Cremepe, Simepe, AMPE e APM afirmam que não são contrários a políticas de inclusão, mas que defendem que elas sejam justas, proporcionais e alinhadas com os marcos legais vigentes.
Parlamentar ajuíza ação na Justiça Federal contra edital da UFPE
Também nesta segunda-feira (22), o vereador do Recife Thiago Medina (PL) ajuizou uma ação popular na Justiça Federal pedindo a anulação do edital do vestibular da Turma Especial de Medicina da UFPE, por meio do Pronera.
De acordo com o parlamentar, o documento apresenta vícios graves que comprometem sua validade, violando princípios constitucionais e a própria finalidade do programa.
Entre os pontos questionados está "a ausência de prova escrita idônea, pois o processo seletivo se limita a uma redação e à análise do histórico escolar, sem exames objetivos em áreas como biologia, química e matemática, considerados indispensáveis para ingresso em Medicina."
Medina argumenta que a conduta da universidade “afronta a moralidade administrativa e coloca em cheque a formação dos Médicos brasileiros”. Ele solicitou à Justiça uma liminar não só para a suspensão imediata do edital, como também pede a anulação definitiva ao final do processo.
“A UFPE precisa preservar sua credibilidade. Não podemos aceitar um processo seletivo que visa beneficiar um grupo ideológico. A lei existe para ser cumprida”, declarou Medina, referindo-se aos membros do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A ação tramita na 9ª Vara Federal de Pernambuco.
"Criação desta turma especial não interfere na distribuição regular de vagas", diz UFPE
A coluna Enem e Educação entrou em contato com a UFPE sobre a ação ajuizada na Justiça Federal. Por nota, a institição reforçou que a proposta de criação de uma turma extra de graduação em Medicina, será ofertada através de vagas supranumerárias, tendo sido aprovada pelo Conselho Superior da UFPE, por meio da Resolução nº 1 de 29 de julho de 2025.
"É fundamental ressaltar que essas vagas são específicas de uma Turma Extra que foi criada exclusivamente para esse fim, dentro da autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial prevista no Artigo 207 da Constituição federal e não afetam as vagas já oferecidas regularmente pela UFPE por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu). A criação desta turma especial não interfere na distribuição regular de vagas da universidade que já existe fluxo de funcionamento definido na instituição via SISU", disse a instituição.
A UFPE citou ainda o que diz o Art. 53 da Lei nº 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB), em que as universidades podem “I - criar, organizar e extinguir, em sua sede, cursos e programas de educação superior; II - fixar os currículos dos seus cursos e programas, observadas as diretrizes gerais pertinentes; IV - fixar o número de vagas oferecidas em cada curso, conforme a capacidade institucional.”.
"Assim, a LDB reforça a autonomia universitária para definir o número de vagas, incluindo a abertura de vagas supranumerárias, especialmente quando destinadas a políticas públicas específicas. Ainda, o MEC, por meio de notas técnicas e pareceres do Conselho Nacional de Educação (CNE), também reconhece a legitimidade da criação de vagas supranumerárias, especialmente quando associadas a políticas afirmativas e inclusão social", explicou.
Processo seletivo dividido em etapas eliminatórias
Sobre os questionamentos com relação à condução do processo seletivo, a UFPE explicou que os candidatos devem ter concluído o Ensino Médio antes da inscrição e apresentar a documentação exigida que comprove o vínculo com o Programa.
A avaliação é realizada com base nos critérios estabelecidos no item 9 do edital, dividida em duas etapas eliminatórias:
1. Inscrição e Validação de Beneficiário
Nesta fase, a comissão do Incra analisa a documentação enviada para verificar se o candidato pertence ao público-alvo do Pronera. A ausência de comprovação ou o envio de documentos falsos resulta na eliminação imediata.
2. Avaliações
Essa etapa é eliminatória e classificatória, composta por duas avaliações com pesos distintos:
Prova Presencial de Redação em Língua Portuguesa - Com peso 6, a redação segue os critérios da Portaria MEC nº 391/2000. Trata-se de um texto dissertativo-argumentativo avaliado com base em critérios objetivos, como adequação ao tema, organização das ideias, domínio da norma culta e uso apropriado do vocabulário. A nota mínima exigida para não eliminação é 5,0 (em uma escala de 0 a 10).
Avaliação do Histórico Escolar do Ensino Médio - Com peso 4, a análise considera as notas de Língua Portuguesa, Biologia e Química do 1º, 2º e 3º anos. A média aritmética simples dessas notas é multiplicada pelo peso para compor a pontuação final.
“É essencial destacar que a avaliação mencionada já é adotada em outros vestibulares da UFPE cujo público é específico e destinado a políticas públicas peculiares, como o Vestibular Quilombola e o Intercultural Indígena”, diz a instituição.
“A UFPE reitera a lisura e a transparência do processo, destacando que segue rigorosamente as normativas do Programa e da legislação educacional vigente. Ainda, ressalta que, por meio de recursos oriundos do Incra, esse processo seletivo possibilita a parceria da UFPE com o Pronera, a fim de que ambas as instituições continuem comprometidas com a inclusão e com a democratização do acesso ao ensino superior, na garantia de um processo seletivo justo e transparente para todos/as os/as candidatos/as.”
Como funciona o Pronera
O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) foi instituído por meio da Portaria do Ministério Extraordinário da Política Fundiária (MEPF) n.º 10, de 16 de abril de 1998, a partir da reivindicação de movimentos sociais ligados ao meio rural por um programa de Estado voltado à educação.
A execução do Pronera se dá por meio de parcerias com instituições de ensino públicas e privadas sem fins lucrativos, governos estaduais e municipais.
As formações incluem: alfabetização e escolarização de jovens e adultos no ensino fundamental e médio em áreas de reforma agrária; capacitação e escolarização de educadores para o ensino fundamental em áreas de reforma agrária; formação inicial e continuada de professores sem formação em áreas de reforma agrária; formação de nível médio, concomitante/integrada ou não com ensino profissional; e Curso técnico profissional de nível médio;
Os números do Pronera (1998 a 2024), segundo consta no site do Incra, mostram que já foram ministrados 545 cursos para 192.764 estudantes em todos os estados brasileiros.