Seleção sem Enem, só redação: médicos veem risco de queda na qualidade em curso de Medicina da UFPE para reforma agrária
Críticos veem viés político, e UFPE sustenta que criação de vagas supranumerárias está amparada por autonomia universitária prevista na constituição

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A decisão da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Campus Caruaru (Agreste do Estado), de criar um curso de Medicina voltado exclusivamente a integrantes da reforma agrária reacendeu um debate delicado: como equilibrar políticas de inclusão social com a preservação da isonomia acadêmica e a credibilidade das universidades públicas?
A proposta integra o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), política federal voltada à escolarização de trabalhadores assentados e acampados.
Em Caruaru, no entanto, a experiência despontou com pontos inéditos e polêmicos: serão 80 vagas voltadas a candidatos vinculados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a grupos ligados à reforma agrária, com seleção feita por redação e carta de recomendação, fora do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e do Sistema de Seleção Unificada (Sisu).
"Um curso à parte, restrito a um único grupo"
Para entidades médicas de Pernambuco, a medida não apenas rompe com o padrão consolidado de ingresso nas universidades, mas cria um precedente perigoso. O médico neurologista Marcílio Oliveira, secretário-geral do Sindicato dos Médicos de Pernambuco (Simepe), foi enfático.
"A gente já tem uma seleção consolidada, que é o Enem. E, dentro do Enem, existem ações afirmativas, como o sistema de cotas para estudantes de escola pública, estudantes negros e de baixa renda. No modelo que estão propondo, não há nenhum sistema já consolidado. É um curso à parte, um curso extra."
Para Marcílio Oliveira, o desenho do processo seletivo levanta dúvidas sobre a formação e a qualidade acadêmica. "A seleção vai ser por uma redação e uma carta do MST, do grupo da reforma agrária. Eles não vão fazer o que é feito nacionalmente, que é o Enem."
Ele frisa que a qualidade do curso também fica em aberto. "Não sabemos se terá a mesma matriz curricular dos cursos que já existem ou se será outro modelo. Vai entrar provavelmente um estudante que não teve a mesma preparação, que não passou pelo mesmo sistema de avaliação dos demais."
Entidades médicas falam em afronta à Constituição
Em nota conjunta divulgada na segunda-feira (22), o Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe), o Simepe, a Associação Médica de Pernambuco (Ampe) e a Academia Pernambucana de Medicina (APM) afirmaram que a iniciativa afronta princípios constitucionais.
"As principais entidades médicas de Pernambuco manifestam posição contrária à forma como está sendo conduzido o processo seletivo do curso de Medicina criado pelo Pronera/UFPE no Campus Caruaru, voltado exclusivamente a integrantes da reforma agrária", diz o comunicado.
As instituições ressaltam que a Constituição, em seu artigo 206, assegura a isonomia e a igualdade de condições para o acesso às universidades públicas, princípios que, segundo elas, estão sendo comprometidos.
"O ponto central da crítica é a adoção de um processo seletivo exclusivo e paralelo ao sistema nacional, sem utilização do Enem e do Sisu como critérios de acesso", reforçam.
Inclusão versus isonomia
A disputa em torno do curso revela uma tensão recorrente na política educacional brasileira: como promover inclusão sem fragilizar a isonomia?
O secretário-geral do Simepe, Marcílio Oliveira, reconhece a legitimidade das ações afirmativas, mas alerta para a diferença entre ampliá-las e criar caminhos paralelos.
"Dentro do processo geral, criar uma cota para esse perfil de estudante é uma coisa que pode ser discutida. Mas não criar um curso à parte de toda a seleção que já é feita no Brasil todo, restrito a um único grupo. Esse é o grande questionamento."
As entidades médicas também enfatizam não serem contra políticas de inclusão. "Não somos contra políticas de inclusão. Pelo contrário, acreditamos que devem existir e ser fortalecidas. Mas é fundamental que sejam justas, proporcionais e alinhadas aos marcos legais vigentes, assegurando tanto o acesso democrático quanto a qualidade da formação médica", afirmam.
Viés político
Para críticos, a UFPE acaba por reforçar a associação direta entre universidade pública e um segmento social específico. Marcílio não esconde a preocupação com esse viés: "A gente não entende qual é o incentivo, qual é o viés político disso".
O temor é que a universidade pública, que deve ser universal em seus critérios de acesso, passe a ser vista como instrumento de grupos organizados. Isso, segundo os médicos, fragiliza a credibilidade institucional e pode gerar disputas judiciais sobre a legalidade da seleção.
Experiência abortada no Rio Grande do Sul
A experiência em Caruaru não é inédita. Marcílio Oliveira lembra que iniciativa semelhante foi proposta no Rio Grande do Sul, mas acabou abandonada antes do início do processo seletivo. "Já se entende que existe ação afirmativa. Então, não faz sentido duplicar mecanismos de inclusão de forma tão restrita e paralela ao sistema consolidado", disse.
Qualidade acadêmica
As entidades médicas de Pernambuco concluem que a defesa da transparência e da qualidade acadêmica deve prevalecer. "O compromisso das instituições médicas de Pernambuco é com a defesa da equidade, da transparência e da excelência acadêmica, pilares essenciais para a qualidade da formação médica e para a segurança da população."
No Instagram, o médico infectologista Filipe Prohaska também faz críticas ao cenário e defende uma prova nacional de proficiência em Medicina. "O problema é que, até lá (até ser aprovado esse tipo de exame), quem vai pagar essa farsa somos todos nós com diagnósticos errados, tratamentos desastrosos e vidas ceifadas."
"Criação desta turma especial não interfere na distribuição regular de vagas", diz UFPE
A coluna Enem e Educação, deste JC, entrou em contato com a UFPE sobre a ação ajuizada na Justiça Federal. Por nota, a institição reforçou que a proposta de criação de uma turma extra de graduação em Medicina, será ofertada através de vagas supranumerárias, tendo sido aprovada pelo Conselho Superior da UFPE, por meio da Resolução nº 1 de 29 de julho de 2025.
"É fundamental ressaltar que essas vagas são específicas de uma Turma Extra que foi criada exclusivamente para esse fim, dentro da autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial prevista no Artigo 207 da Constituição federal e não afetam as vagas já oferecidas regularmente pela UFPE por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu). A criação desta turma especial não interfere na distribuição regular de vagas da universidade que já existe fluxo de funcionamento definido na instituição via SISU", disse a instituição.
A UFPE citou ainda o que diz o Art. 53 da Lei nº 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB), em que as universidades podem “I - criar, organizar e extinguir, em sua sede, cursos e programas de educação superior; II - fixar os currículos dos seus cursos e programas, observadas as diretrizes gerais pertinentes; IV - fixar o número de vagas oferecidas em cada curso, conforme a capacidade institucional.”.
"Assim, a LDB reforça a autonomia universitária para definir o número de vagas, incluindo a abertura de vagas supranumerárias, especialmente quando destinadas a políticas públicas específicas. Ainda, o MEC, por meio de notas técnicas e pareceres do Conselho Nacional de Educação (CNE), também reconhece a legitimidade da criação de vagas supranumerárias, especialmente quando associadas a políticas afirmativas e inclusão social", explicou.