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Flávio Brayner: Intervalo religioso

A escola, por menos republicana, quer dizer incapaz de oferecer os predicados para a participação no Bem Comum, não é lugar de proselitismo.

Por FLÁVIO BRAYNER Publicado em 07/10/2025 às 0:00 | Atualizado em 07/10/2025 às 10:26

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Já não me surpreende mais o uso de formas abertas ou insidiosas de ataque às instituições da democracia e da república. Aliás, tem se repetido bastante que tais ataques não veem mais “de fora” do ambiente democrático, mas de seu interior e usando os mecanismos de expressão e ação permitidos pela própria democracia.

República

Quanto à nossa “república”, não basta repetir Saldanha Marinho (1816-1895) e seu famoso “Essa não era a república dos meus sonhos!”: nosso republicanismo mais radical (e jacobino), personificado em Caneca, terminou há muito tempo na boca de um bacamarte; nossos abolicionistas eram racistas e nossos democratas morriam de medo do “povo”, uma categoria, aliás, que não teve a oportunidade republicana de se desenvolver plenamente, como substrato político da democracia e como seu fundamento legitimante.

Quando ele, o POVO, não é perigoso, ele é ignorante, portanto, inapto a gerir os negócios da cidade sem que haja um tutor, um líder, um pastor, um guia genial, um supremo comandante, um Duce e até um... educador popular! Ou vocês acham que o instituto da “direção de consciência” é exclusivo dos Jesuítas?

Mesmo sem me surpreender, não achava que a ideia de se criar um INTERVALO RELIGIOSO (na verdade “intervalo bíblico”!) nas nossas escolas públicas, inclusive aqui no Recife que se orgulha de seu passado, quem diria,... “republicano”, pudesse ser aventada! Pois é, vem aí esse “intervalo” em que, se bem entendi, as aulas são interrompidas para que os alunos leiam e discutam passagens de interesse das denominações neopentecostais (são elas que estão propondo tais “intervalos”).

E aí, a ideia de escola laica e republicana vai pro beleléu!

O que é LAICIDADE?

É um principio que garante a liberdade de crer ou não em uma religião, no respeito dos outros e da lei. Esse princípio supõe a liberdade de consciência e de manifestar suas convicções na consideração da ordem pública e dos outros; a separação das instituições publicas das organizações religiosas, e a igualdade de todos diante da lei, quaisquer que sejam suas convicções ou crenças.

O que supõe a neutralidade do estado em matéria religiosa. Isso supõe, também, a interdição de manifestação das convicções religiosas no exercício das funções públicas, mas garante o livre exercício de cultos nos espaços que lhes são destinados ou reservados. Assim, no interior de um estado laico, ninguém é obrigado a aderir a dogmas ou prescrições religiosas.

Não tenho absolutamente nada contra a leitura da Bíblia e, como escritor com formação em História e Filosofia, sinto-me obrigado a conhecê-la: não é possível compreender as “práticas discursivas” e as instituições subjetivantes do Ocidente, sem sua leitura. Mas também como escritor: Edmond Wilson (“O castelo de Axel”) dizia que, ali, no Antigo Testamento, estavam todos os estilos e gêneros da literatura ocidental! Mas, uma coisa é conhecer a Bíblia, outra é fazer um uso proselitista, catequético a serviço de uma denominação religiosa, agindo sobre a infância das classes populares!

Razão

O princípio de separação entre o uso da palavra pública e o da convicção religiosa está baseado em Kant, em seu ensaio sobre a Aufklärung (Esclarecimento), fazendo a distinção entre USO PÚBLICO e USO PRIVADO DA RAZÃO: faço uso público no exercício pessoal de minhas convicções em confronto com outras opiniões, ali onde posso expressar crenças e certezas individuais, tendo aderido a elas de forma livre e consciente, quer dizer com o uso soberano da razão (o que talvez não seja o caso das crianças de nossas escolas públicas).

E faço “uso privado” quando, no exercício de um cargo público, ou no interior de uma instituição a qual pertenço e que exige de mim ou fidelidade (Igreja, Exército) ou neutralidade (funções públicas e republicanas), não posso nem expor nem manifestar crenças religiosas pessoais. Aliás, num país que tem uma Bancada Evangélica, um Ministro do Supremo “terrivelmente evangélico” e se permite ostentar, em tribunais civis, uma... cruz cristã ao fundo, pode-se esperar qualquer coisa!

A escola, por menos republicana que ela seja, quer dizer incapaz de oferecer os predicados para a participação no Bem Comum, não é lugar de proselitismo. Como disse em outro artigo, estamos em marcha forçada para construção da “República Neo-Evangélica do Brasil”. E, diante da quantidade de pastores de plantão nesse amplo e lucrativo mercado, nada me faltará!

Flávio Brayner , professor Emérito da UFPE

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