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Amaury Cantilino: 'A epidemia invisível da solidão e a urgência da saúde mental na era digital'

Talvez o que o mundo mais precise seja de gente que abrande o passo e permita os encontros. Reconectar pessoas, mesmo que aos poucos

Por Amaury Cantilino Publicado em 02/08/2025 às 0:00 | Atualizado em 02/08/2025 às 10:51

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Tem-se repetido que nunca estivemos tão conectados e, ao mesmo tempo, tão sozinhos. As tecnologias nos colocam a um clique de qualquer pessoa, mas ainda assim cresce em todas as faixas etárias o sentimento de desconexão afetiva e de não pertencimento. Trata-se da chamada "epidemia da solidão". Ela é silenciosa, persistente, e cada vez mais evidente em nossos consultórios, escolas, ambientes de trabalho e, sobretudo, na vida cotidiana.

A solidão de que falamos aqui não é apenas estar fisicamente só, mas a sensação de não ter com quem dividir o que somos de verdade: nossas dúvidas, dores, alegrias miúdas. É uma solidão afetiva, relacional, que muitas vezes aparece mesmo quando estamos cercados de pessoas. Não se resolve com curtidas ou emojis. Ela exige presença, escuta e tempo compartilhado.

Esse fenômeno está ligado a mudanças profundas no modo como vivemos. A urbanização em grandes cidades gerou migrações, afastou famílias, desfez vizinhanças, acelerou rotinas, impôs amplos deslocamentos.

O que antes era espontâneo, como um café na calçada ou uma conversa sem hora para acabar, foi substituído por encontros marcados com antecedência, agendas lotadas e interações performáticas. A informalidade dos laços deu lugar ao networking. No entanto, os vínculos reais não se constroem com eficiência, mas com a delicadeza da vulnerabilidade.

A solidão, quando se torna crônica, tem impacto direto na saúde. Diversos estudos mostram que ela está associada a um risco aumentado de depressão, ansiedade, distúrbios do sono e até de doenças cardiovasculares. A pesquisadora Julianne Holt-Lunstad, da Brigham Young University, demonstrou que sentir-se só de forma persistente pode ser tão prejudicial quanto fumar 15 cigarros por dia. O corpo adoece junto com a alma.

Uma atuação integrada para a saúde mental

A atuação em saúde mental é, idealmente, integrada. O psicólogo é o profissional que ajuda a pessoa a compreender seus sentimentos, padrões de comportamento e a desenvolver estratégias para lidar com suas dores. Já o psiquiatra entra quando há um adoecimento mais profundo ou persistente tal como depressão, transtornos de ansiedade, transtorno bipolar...

O psiquiatra pode associar o acompanhamento clínico ao uso de medicamentos, se necessário, e ajudar no diagnóstico diferencial com doenças físicas. Outros agentes também são essenciais: terapeutas ocupacionais, educadores físicos, assistentes sociais, líderes comunitários. Muitas vezes, o primeiro passo vem de uma escuta verdadeira, e isso pode vir de qualquer pessoa.

O poder público tem um papel a cumprir. É preciso fortalecer a rede de saúde mental e capacitar equipes da atenção básica. Mas também é necessário ir além do consultório: criar políticas que favoreçam o encontro. Oficinas culturais, hortas comunitárias, atividades em praças, grupos de convivência, ações simples que ajudam a restaurar o tecido social e devolver às cidades sua vocação original: ser espaço de vida em comum.

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E quanto à tecnologia? Ela pode ser ponte, quando usada com intenção. Pode aproximar quem está longe, manter vínculos e até viabilizar cuidados terapêuticos. Mas, sem direção, vira ruído. Ela nos oferece janelas para o mundo, mas muitas vezes fecha as portas da presença. Estamos sempre online, mas nem sempre disponíveis de verdade. E no fundo, seguimos precisando do que sempre precisávamos: toque, riso compartilhado, silêncio dividido. E isso, nenhuma conexão 5G consegue entregar sozinha.

Talvez o que o mundo mais precise seja de gente que abrande o passo e permita encontros. Reconectar pessoas, mesmo que aos poucos, é um caminho possível e necessário para cuidar da saúde de uma sociedade cansada, isolada e faminta de afeto.

*Amaury Cantilino, psiquiatra e psicoterapeuta

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