Sem 2ª chance: quase todos os municípios de Pernambuco não têm ações de apoio a ex-detentos
Só 3 cidades possuem políticas de reinserção social, segundo TCE-PE. No ano passado, 248 egressos prisionais acompanhados pelo Patronato foram mortos

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Na prevenção à violência, o processo de ressocialização de pessoas privadas de liberdade é um pilar fundamental. Mas, com poucas oportunidades criadas pelo poder público, faltam perspectivas para quem deixa os precários presídios espalhados pelo País e crescem os riscos de reincidência no crime.
O tema segue pouco discutido e, em geral, negligenciado pelos municípios. Levantamento do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco (TCE-PE) sobre as políticas adotadas na área da segurança pública mostra que apenas três das 184 cidades desenvolvem ações ou políticas que permitam a inserção econômica e social dos egressos do sistema prisional: Recife, Olinda e Caruaru (Agreste).
Ativista dos direitos humanos há mais de três décadas e presidente do Serviço Ecumênico de Militância nas Prisões (Sempri), a assistente social Wilma Melo entende como poucos a rotina e os desafios de quem está preso ou deixou o sistema penitenciário pernambucano. Para ela, o resultado da pesquisa do TCE-PE demonstra a falta de planejamento do Estado e dos municípios para garantir a reinserção social.
"Quando o preso sai da cadeia, ele não tem um real no bolso, sai apenas com o alvará. Muitas vezes, não volta para a família, não tem lugar para morar. Ele sabe apenas que precisa voltar ao município de origem. A prefeitura tem que fazer esse acolhimento, amparar, encaminhar para cursos, trabalhos", afirmou.
Um estudo realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional em parceria com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em 2022, mostrou que a média de reincidência criminal no primeiro ano de liberdade é de 21%, progredindo até uma taxa de 38,9% após cinco anos.
"Há muita gente no Centro do Recife usando tornozeleira eletrônica e dormindo nas calçadas das ruas. São pessoas que não têm para onde ir e não recebem atenção do poder público. O município precisa tomar para si a reintegração social, evitando que esses ex-detentos voltem a cometer crimes por não encontrarem outro caminho", pontou Wilma Melo.
OLINDA É EXEMPLO NO PROCESSO DE REINSERÇÃO SOCIAL
O município de Olinda, no Grande Recife, foi um dos primeiros a criar política voltada aos egressos do sistema prisional. Desde 2017, em convênio com o Estado, recebe reeducandos prestes a concluir as penas.
Em geral, segundo a gestão municipal, eles ficam lotados em pastas nas secretarias de Gestão Urbana e de Saúde. O custo anual é de R$ 2,8 milhões.
O grupo, atualmente com 116 pessoas privadas de liberdade, é dividido nos setores de serviços gerais, limpeza urbana, drenagem, conservação de praças, feiras e mercados públicos, além de manutenção dos cemitérios da cidade.
No ano passado, Olinda também inaugurou um escritório social - equipamento que faz parte do Programa Fazendo Justiça, resultado de acordo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.
O serviço atende pessoas que cumpriram pena em Olinda ou cidades circunvizinhas. Os assistidos são encaminhados para instituições como Defensoria Pública, Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), cursos de capacitação, unidades de saúde e espaços voltados para empregabilidade e expedição de documentos.
O escritório social no município é fruto da parceria com Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), CNJ e Universidade Católica de Pernambuco Ele fica na Avenida Sigismundo Gonçalves, nº 581, no bairro do Varadouro.
O primeiro equipamento instalado no Estado foi em Caruaru, no Agreste, em junho de 2021. Na época, a prefeita era Raquel Lyra.
"Esses equipamentos são fundamentais. Não basta o poder público dar algum trabalho aos presos. É preciso fornecer condições para a reinserção social deles", destacou Wilma Melo.
Ela citou outra situação que a preocupa. "Há pessoas com transtornos mentais que deixam as prisões sem qualquer assistência. O município precisa acolher e encaminhar para atendimento psicológico. Não pode simplesmente abandonar."
Os escritórios sociais são um caminho para identificar os egressos com adoecimento mental e que precisam de encaminhamento para tratamento.
Em nota, a Secretaria Estadual de Administração Penitenciária e Ressocialização (Seap) informou que o Patronato Penitenciário (órgão de execução penal que acompanha os reeducandos em regime aberto, livramento Condicional e em liberdade definitiva) está ampliando a captação de parcerias com órgãos públicos e empresas privadas no Estado para oferecer oportunidades de trabalho e qualificação profissional.
Além disso, a partir deste segundo semestre, "o órgão dará início a uma mobilização estadual para a criação de escritórios sociais municipais, cuja função é prestar assistência aos egressos e seus familiares".
A Seap reforçou também que, na gestão atual, ampliou para 20 o número de unidades fabris no sistema prisional, sendo oito inauguradas apenas em 2025.
Atualmente, o Patronato registra 42 Acordos de Cooperação Técnica firmados e 953 reeducandos em atividade laboral. "Somente neste ano, foram realizados seis cursos profissionalizantes, com 159 pessoas certificadas", disse a pasta estadual.
ENTIDADE CRIADA POR EX-DETENTO AJUDA A MUDAR VIDAS
O alagoano Cicero Alves, de 42 anos, conhece bem os desafios de quem tenta recomeçar a vida após deixar as grades da prisão. Ele é o primeiro brasileiro a concluir uma faculdade em regime fechado. Formou-se no curso de administração e tem duas MBAs – Gestão Pública e Liderança e Coaching na Gestão de Pessoas.
Em 2019, após ter o direito à liberdade, ele se mudou para Pernambuco e passou a realizar palestras para reeducandos como forma de ajudá-los no processo de ressocialização. Em paralelo, deu início ao curso de direito, concluído neste ano.
Cicero também é fundador do Instituto Fênix, associação privada sem fins lucrativos criada em 2022 e voltada a ações de educação e geração de oportunidades para pessoas privadas de liberdade, egressos e também jovens infratores.
A pesquisa do TCE-PE, inclusive, identificou que apenas 14 municípios, ou seja, 7,6% do total, têm ações/projetos voltados aos jovens que cumprem ou cumpriram medidas socioeducativas. Esse resultado reforça a importância de entidades no apoio a essa faixa etária tão vulnerável.
Na avaliação de Cicero, o levantamento do tribunal não é uma surpresa.
"A realidade que enfrentamos diariamente no Instituto Fênix é a de um sistema que abandona o ser humano no momento mais crucial: a hora do recomeço. Quando um egresso deixa a prisão, ele carrega não apenas o peso do passado, mas também o desafio de enfrentar uma sociedade que, em grande parte, o rejeita", disse.
"É inadmissível que, em pleno 2025, apenas três municípios do Estado contenham políticas de reintegração social. A ausência dessas ações não é apenas uma falha de assistência social, é uma falha de segurança pública. A reincidência criminal está diretamente ligada à falta de oportunidades, de acolhimento e de caminhos legítimos para reconstruir a vida", complementou.
No ano passado, 248 egressos acompanhados pelo Patronato Penitenciário foram assassinados. O número é, por exemplo, maior do que o total de mortes violentas registradas em todo o Estado no mês de novembro (240 registros).
"Reinserir não é apenas um ato de compaixão, é uma estratégia inteligente de prevenção à violência. Quando um município investe em políticas de apoio ao egresso, ele está quebrando o ciclo da criminalidade e construindo pontes de dignidade. Isso não é um favor. É um dever do Estado e um direito de quem já pagou por seus erros", afirmou.
Desde a inauguração, o Instituto Fênix encaminhou 42 pessoas ao ensino superior com bolsas de 100% na Faculdade Senac. Também qualificou mais de 460 egressos e mais de 1,1 mil são acompanhados pela equipe psicossocial da entidade. A sede fica no bairro dos Coelhos, na área central do Recife.
A próxima meta é inaugurar o primeiro restaurante e padaria social do Brasil formado 100% por ex-presidiários.
No ano passado, o instituto foi reconhecido com o Prêmio Innovare, na categoria "Justiça e Cidadania", pela criação do aplicativo Fênix Connect, voltado à reintegração de egressos do sistema prisional e familiares, conectando-os a oportunidades de emprego, educação e capacitação.