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Fim do DPVAT: Brasil deixa 1,3 milhão de pessoas vulneráveis à própria sorte e sem cobertura do seguro obrigatório para sinistros de trânsito

Cenário de desamparo atinge principalmente a população mais vulnerável, que depende da Justiça para buscar auxílio financeiro, sem conseguir bancar

Por Roberta Soares Publicado em 20/07/2025 às 7:30

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Como previsto, a decisão política do governo federal de extinguir - na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) - e de não recriar - no governo atual do presidente Lula (PT) - o Seguro de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres (DPVAT) está custando caro à população brasileira, principalmente a mais pobre e vulnerável.

Atualmente, mais de 1,3 milhão de vítimas de sinistros de trânsito (não é mais acidente de trânsito que se define, segundo o CTB e a ABNT) estão sem qualquer cobertura financeira para ajudá-las a se recuperar após sofrerem quedas, colisões e atropelamentos nas ruas, avenidas e estradas do País. A situação está assim desde 15 de novembro de 2023, após a extinção do DPVAT.

Esse cenário de desamparo atinge principalmente a população mais pobre e vulnerável, que depende da Justiça para buscar auxílio financeiro, uma batalha que muitos não conseguem bancar. A situação é agravada pelo aumento exponencial de vítimas de quedas e colisões com motos, impulsionado pelo crescimento dos aplicativos de transporte com motocicletas, como Uber Moto e 99 Moto.

O FIM DO DPVAT É UMA CONTA QUE CAIU NO COLO DOS MAIS FRACOS

BRENDA ALCANTARA/JC IMAGEM
Como previsto, a decisão política do governo federal de extinguir - na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) - e de não recriar - no governo atual do presidente Lula (PT) - o DPVAT está custando caro à população brasileira, principalmente a mais vulnerável - BRENDA ALCANTARA/JC IMAGEM

O DPVAT, criado em 1974 para indenizar vítimas de sinistros de trânsito, foi originalmente administrado por uma seguradora e, a partir de 2021, pela Caixa Econômica Federal (CEF). A cobrança obrigatória do seguro foi suspensa em 2020 com um desconto superior a 80%, e isentada em 2021 pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, sob o argumento de que havia um saldo de R$ 7 bilhões e suspeitas de irregularidades. Entretanto, a Caixa informou que, por falta de dinheiro, os recursos do fundo se esgotaram, impedindo pagamentos para sinistros registrados após 14 de novembro de 2023.

Em resposta, o governo Lula (PT) enviou o Projeto de Lei Complementar 233/2023 ao Congresso Nacional para recriar o seguro obrigatório, que passaria a ser chamado de SPVAT. No entanto, no fim de 2024, um acordo político entre deputados federais no Congresso Nacional sepultou a tentativa de recriar o SPVAT, deixando as vítimas entregues à própria sorte. A revogação do SPVAT foi uma barganha política para aprovar a pauta orçamentária do governo Lula.

O DPVAT desempenhava uma importante função social em um País onde sequelas permanentes são registradas a cada minuto e uma pessoa morre a cada 15 minutos no trânsito. Para muitas famílias, a indenização era tudo o que tinham para um recomeço pós-sinistro. Dados do SUS revelam que 65% das pessoas que sofrem sinistros de trânsito vivem com 1 a 1,5 salário mínimo, destacando o perfil de vulnerabilidade da maioria das vítimas. Atualmente, menos de 20% dos veículos possuem seguro privado, o que significa que a maioria das vítimas não terá cobertura e precisará recorrer à Justiça.

O DRAMA DE MATHEUS LUCAS SANTOS, UM MOTOBOY QUE FICOU SEM AMPARO

Foto: Agência Brasil
E com a explosão dos serviços de transporte de passageiros com motocicletas - como Uber e 99 Motos -, o cenário é ainda pior - Foto: Agência Brasil

A história de Matheus Lucas Santos, um motoboy de 28 anos, ilustra a crueldade da situação que muitos brasileiros têm vivido com o fim do DPVAT. Matheus, que trabalha só com delivery, sem nunca ter transportado passageiros por medo de quedas e colisões, sofreu um grave sinistro em João Pessoa (PB), no dia 30 de maio, às 21h, durante sua última entrega. Chovia muito, e em uma rua com pouca iluminação, ele teria desviado de um carro que forçou a passagem no sentido contrário, e não percebeu que na sua faixa havia caçambas de entulho instaladas de forma ilegal e sem iluminação adequada, colidindo frontalmente com uma delas.

O impacto foi devastador e totalmente na face do motoboy: Matheus “apagou", como ele mesmo definiu, e sofreu múltiplas fraturas no maxilar, mandíbula e dentes, além de ter o lábio cortado. A viseira do capacete, que estava totalmente fechada, o protegeu de cortes ainda piores. “Desde o dia do sinistro, estou parado e sem receber nada, dependendo da ajuda de amigos para sobreviver”, conta. Pai de uma filha de 3 anos, o motoboy já fez a cirurgia de reconstrução do lábio e aguarda as cirurgias da mandíbula e do maxilar - tudo através do Sistema Único de Saúde (SUS).

Acervo pessoal
Matheus Lucas Santos, motoboy que sofreu sinistro de trânsito e está sem qualquer cobertura por causa do fim do DPVAT no País - Acervo pessoal

Apesar de ter sido atendido no Hospital de Emergência e Trauma Senador Humberto Lucena, em João Pessoa, Matheus não teve qualquer cobertura das plataformas de entrega como o Ifood. “Não tive nenhum apoio das plataformas, que exigem diversos documentos e a contratação de advogados que cobram 30% ou 40% do valor a ser recebido”, explica. A ironia é que, para Matheus, ele tem o direito à cobertura por pagar o emplacamento e impostos, que deveriam garantir esse tipo de suporte. Ele ressalta que as plataformas, muitas vezes, só pagam diárias e não cobrem invalidez, forçando as vítimas a recorrer à Justiça, o que é difícil sem conhecimento técnico.

A LUTA POR JUSTIÇA SOCIAL COM UM NOVO DPVAT

BRENDA ALCANTARA/JC IMAGEM
Vale lembrar que o trânsito brasileiro mata mais de 34 mil pessoas e mutila outras 500 mil por ano. E, mesmo assim, o País extinguiu o DPVAT, a única ajuda que as vítimas tinham - BRENDA ALCANTARA/JC IMAGEM

Carlos Veras, diretor regional do Centro de Defesa das Vítimas do Trânsito (CDVT), uma organização que atua há quase 20 anos na luta por políticas mais eficientes para reduzir mortes no trânsito e restabelecer os sinistrados, critica a forma como a pauta do DPVAT foi arrastada para um debate político e ideológico, transformando-o em apenas um imposto.

Veras aponta que os cidadãos já pagam altas taxas de impostos, com quase 48% do valor de um carro sendo imposto, além de R$ 11,5 a 13 bilhões em multas por ano, das quais a única coisa que voltava para o cidadão era o DPVAT. “Infelizmente, quem está pagando essa conta é o brasileiro que mais precisa e que é mais vulnerável. A cobrança desse seguro só poderia vir a ser dispensada se o trânsito brasileiro fosse menos violento, algo que não é verdade e não está perto de ser”, reforça.

O diretor do CDVT foi um dos autores de parte das emendas do PL que criava o SPVAT, mas ficou surpreso com os jabutis (disposições inseridas no texto sem relação direta com o tema) de R$ 18 bilhões como antecipação de crédito, que o governo incluiu. Embora tenham conseguido inserir despesas médicas e fúnebres no projeto inicial, que previa apenas morte e invalidez, a revogação veio como parte de uma barganha política.

Acervo pessoal
Carlos Veras, diretor regional do Centro de Defesa das Vítimas do Trânsito (CDVT) - Acervo pessoal

Atualmente, o CDVT e alguns deputados federais estão trabalhando para tentar criar um novo seguro indenizatório obrigatório em nível nacional que destinaria parte dos valores para indenizar as vítimas do trânsito, buscando justiça social. Além disso, há uma ação no Tribunal de Contas da União (TCU) para que R$ 2,6 bilhões das seguradoras que faziam parte da Líder - antiga operadora do DPVAT - sejam pagos, o que poderia ajudar a reduzir o impacto social causado pelo fim do seguro obrigatório.

Antes de ser extinto pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, o DPVAT ajudava as vítimas do trânsito com quantias relativamente pequenas, mas que faziam diferença na recuperação de feridos, mutilados e das famílias dos que morreram. Eram pagos R$ 13,5 mil em casos de morte ou invalidez permanente, e R$ 2.700 de reembolso com despesas médicas.

Divulgação
Brasil cada vez mais longe de alcançar as metas de redução de mortes no trânsito definidas pela ONU - Divulgação

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