Motocicletas e mortes no trânsito: por que nosso insucesso, enquanto a frota de motos explode no Brasil?
Especialista alerta que o problema é urgente e nacional. Não pode ser um esforço pontual, espasmódico, restrito a um momento da gestão pública

Confira o artigo do superintendente da ANTP (Associação nacional de Transportes Públicos, Luiz Carlos Néspoli, o Branco, sobre o impacto que a explosão da frota de motocicletas e, principalmente, a má condução desses veículos, têm provocado para o trânsito e a saúde pública do País.
O assunto tem sido discutido nacionalmente depois que a gestão municipal da maior capital do País - São Paulo - vem travando uma batalha judicial para impedir a liberação oficial do serviço de Uber e 99 Moto na cidade.
No artigo, Néspoli alerta para o fato de que as mortes com motocicleta têm crescido sem sinais de controle pelo estado brasileiro e, por isso, o assunto precisa ser enfrentado com firmeza diante de todas as suas complexidades. Confira:
“Com a proibição do mototáxi pela prefeitura de São Paulo, reacendeu a discussão sobre a acidentalidade e o número de mortos e feridos no trânsito envolvendo o veículo motocicleta. Ao proibir, a prefeitura age de forma correta uma vez que o uso da motocicleta para transporte remunerado de passageiros aumenta o número de caronas e consequentemente a exposição ao risco, podendo-se ter mais mortes do que já vem ocorrendo.
No entanto, as questões envolvendo a liberação ou não do mototáxi é apenas uma ponta do iceberg. As mortes em geral com motocicleta têm crescido de forma significativa sem sinais de controle pelo estado brasileiro e as ferramentas tradicionais de combate ao problema – engenharia, fiscalização e educação – adotadas pela maioria dos órgãos de trânsito não estão surtindo o mesmo efeito que se observa com relação à acidentalidade por outros motivos.
O assunto tem uma complexidade que, a nosso ver, vai exigir mais do que os instrumentos tradicionais de gestão. É necessário repensar a estratégia, e é isso que se propõe discutir aqui.
1. Caracterização da situação de acidentalidade e mortes no trânsito
Algumas evidências estatísticas apontam para a seriedade do problema.
Mortes no trânsito
* Número de mortes com motocicletas no País em relação ao número total de mortes:
Em 2011 teve início a Década de Ações da ONU para redução de acidentes e mortes no trânsito no mundo. Nesse ano, foram registradas 43.908 mortes, sendo 11.443 com motocicletas e 32.465 com outros motivos, como ilustra o gráfico. A partir de então, houve uma queda significativa de mortes por outros motivos até 2019, mantendo-se relativamente estável, voltando a cair em 2023. Por outro lado, não se observou a mesma queda em mortes com motocicletas, número que se manteve relativamente estável até 2022, subindo novamente em 2023.
* Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde de 2023: internações aumentam
Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde publicado em 2023 aponta que de 2011 a 2021 a taxa de internações de motociclistas por lesões no trânsito no País cresceu 56%, passando de 3,9 internações para cada 100 mil habitantes, para 6,1, conforme ilustra o gráfico, abaixo.
Ainda com relação às despesas públicas, o Boletim ressalta que passaram de 5,2 milhões de reais em 2011, para 167 milhões em 2021.
* Número de mortes por motocicleta na cidade de São Paulo em comparação com número total de mortes
Assim como na situação nacional, o número de mortes em geral no trânsito tem uma queda importante em São Paulo até 2019, quando volta a crescer. Analisando os tipos de acidentes envolvidos, observa-se que a partir de 2019 a mesma tendência de uma relativa estabilidade no número de mortes para outros tipos de acidente, enquanto um crescimento importante com motocicletas, crescendo 63% de 2019 a 2025, passando de 297 mortes anuais para 483, como ilustra o gráfico, abaixo:
2. Caracterização da frota
Cadastro nacional de veículos e de condutores no País
Segundo o documento publicado pela Senatran, em agosto de 2024, Panorama Estatístico de Motocicletas, Motonetas e Ciclomotores, a base de dados do RENAVAM já registrava um total 34,2 milhões de veículos de duas rodas, sendo 27,7 milhões de motocicletas.
Nesse mesmo período, o RENACH registrava 39,4 milhões de motociclistas habilitados na categoria A (motocicleta) em combinação com outras categorias, e o RENAVAM registrava 32,5 milhões de motocicletas pertencentes a pessoas físicas.
O documento, ao cruzar os cadastros de proprietários e de condutores na categoria A, constatou que 17,5 milhões de proprietários não são habilitados na categoria A. Não há dados disponíveis para compreender isso, mas permite inferir que ou são proprietários que adquirem motocicleta para alguém dirigir, ou são proprietários dirigindo sem habilitação, ou ambas as hipóteses.
Crescimento da frota
Frota nacional
Se tomarmos o período de 2011 a 2024, a frota nacional passou de cerca de 70 milhões de veículos para 124 milhões, crescendo 176%, enquanto a de motocicletas saiu de 18,4 milhões de veículos para 34,5 milhões, crescendo 187,5%, crescimento muito parecido com o crescimento da frota total. Nesse período, a frota de motocicletas girou em torno de 27% da frota total nacional.
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Frota da cidade de São Paulo
Se observarmos, no entanto, como se deu o crescimento na cidade de São Paulo, verifica-se que a frota de motocicletas cresceu quase o dobro do total de veículos, passando de 850 mil veículos, para 1,55 milhão (aumento de 82,35%), enquanto a frota total sai de 6,62 milhões, para 9,75 milhões de veículos (aumento de 47,8%).
3. Forma de atuação dos órgãos de trânsito
A maneira tradicional e mais corrente de atuação dos órgãos de trânsito como política de segurança viária é a utilização das ferramentas da engenharia de tráfego, da fiscalização e de programas educativos e campanhas.
Essas ferramentas são melhores utilizadas em abordagens estratégicas como a da Visão Zero, concebido na Suécia, e do Programa Vida em Trânsito, do Ministério da Saúde. Nestes programas, amplia-se a participação de vários atores que são responsáveis pela gestão pública nos vários aspectos que envolvem a segurança viária, mas também de outros atores da sociedade que contribuem com a discussão e com a busca de solução do problema. De qualquer forma, as ferramentas tradicionais são as ferramentas fins de qualquer programa.
No entanto, essas ferramentas não estão sendo eficazes para reduzir sinistros e mortes por motocicletas no Brasil. Como tentaremos demonstrar, a seguir, de forma resumida, elas têm limitações em cada um dos seus campos, mesmo com as novas abordagens citadas anteriormente. Há algo mais envolvido no “ambiente” das motocicletas que ainda precisamos enfrentar, pois que representam o maior dos obstáculos a ações eficazes de redução da sinistralidade por este modo de transporte.
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Engenharia de tráfego
Cabe à engenharia de tráfego estabelecer e prover as vias de sinalização adequada para todos os tipos de usuário – trânsito e estacionamento de veículos, acesso ao transporte público, mobilidade dos pedestres e de pessoas com deficiência – e de criar ou alterar a infraestrutura viária existente visando tornar o trânsito mais seguro.
No que diz respeito à motocicleta, há muito pouco a se fazer no campo da engenharia de tráfego. Há apenas duas situações inovadoras propostas pela Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo (CET): a ideia da segunda linha de retenção nos cruzamentos semaforizados, criando um bolsão para as motocicletas à frente dos demais veículos, que deu certo e está regulamentada; e a ideia da “faixa azul”, a sinalização para o trânsito de motocicletas entre as fileiras de carros, ainda em teste permitido pela SENATRAN, mas cujos primeiros resultados são positivos, segundo a CET. Exceto as sinalizações inovadoras, as demais são semelhantes às dedicadas a todo o tráfego de veículos motorizados, cabendo aos motociclistas obedecê-las.
Fiscalização de trânsito
São responsabilidades dos órgãos de trânsito:
- Município: fiscalização das normas de circulação e conduta em vias urbanas;
- Estado: fiscalização das normas de circulação e conduta em rodovias estaduais e fiscalização das condições do veículo e do condutor;
- União: fiscalização das normas de circulação e conduta e das condições do veículo e do condutor nas rodovias federais;
- Distrito Federal: atribuições relativas aos Municípios e aos Estados.
No que diz respeito ao motofrete ou ao mototáxi, além das normas previstas na legislação de trânsito, cabe à autoridade municipal a fixação e a verificação das normas específicas complementares para transporte de mercadorias e de passageiros.
Sendo registrada uma infração de trânsito são aplicadas penalidades ou medidas administrativas. São penalidades, a multa, suspensão do direito de dirigir, apreensão do veículo, cassação da CNH e frequência obrigatória em curso de reciclagem. São medidas administrativas, a retenção ou remoção do veículo, o recolhimento da CNH, o recolhimento do CRLV, o teste de alcoolemia e a perícia de substância entorpecente. Cada infração tipificada no CTB estabelece o tipo de penalidade e de medida administrativa.
Ressalta-se que a quitação das multas é exigência obrigatória para o licenciamento anual da motocicleta. Não há informação suficiente sobre o total de motocicletas não licenciadas anualmente, mas pelo volume de recolhimento nas blitzes das polícias, é possível depreender que se trata de um volume significativo. Se não pagam a multa, não é possível licenciar o veículo, e se não licenciam, a penalidade de multas não têm significado para o proprietário.
Para habilitação há várias exigências no CTB e em Resoluções do CONTRAN e, ainda, há exigências complementares, de cunho local, para motofretistas e mototaxistas, como a idade mínima de 21 anos, a certidão de antecedentes criminais, a realização de curso especializado, dentre outras, e para qualquer motociclista, a legislação exige vestimentas adequadas.
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Ainda, há exigências para os veículos, como os equipamentos considerados obrigatórios. No caso de motofrete, normas para o baú ou para a mochila de transporte de carga. Ressalta-se que tanto o motofrete, quanto o mototáxi, são considerados veículos comerciais, e nesses casos há exigência da placa de identificação vermelha para o veículo, o que quase nenhuma deles tem.
O que se observa hoje é um volume expressivo de irregularidades que são identificadas nas blitzes realizadas pelo policiamento. Mas blitzes, como outras formas de fiscalização por agentes de trânsito, não são (e não teria cabimento serem) ações “onipresentes”, pelo contrário a eventualidade é a regra. Se as ações eventuais já identificam um grande volume de irregularidades, imagina-se o verdadeiro tamanho disso.
Educação para o trânsito
O CTB obriga os órgãos executivos de trânsito nos três níveis de governo – União, Estados e Municípios, a constituírem uma coordenação de educação de trânsito, bem cono de uma Escola Pública de Trânsito.
As ações típicas dessas áreas nos órgãos de trânsito são as campanhas educativas nas suas várias formas, a realização de programas e a produção de materiais educativos, a realização de seminários, encontros, congressos, dentre outras atividades educativas.
De modo geral, predominam nessas áreas programas educativos com foco em crianças e adolescentes, sob várias formas criativas e bem produzidas, o que inclui capacitação de professores da rede de ensino. Exceto as campanhas, poucas são as outras ações educativas voltadas para condutores e adultos em geral.
Os condutores habilitados já passaram por cursos e treinamentos práticos. Pode-se questionar a qualidade dessa formação, e que é muito difícil reter o conhecimento de um amplo o rol de sinais de trânsito e de regras básicas de circulação, mas, por outro lado, contam-se nos dedos os sinais de transito e as regras básicas que são muito conhecidas pelos condutores, muitas das quais são as mais frequentemente transgredidas. Ou algum condutor habilitado não sabe que tem que respeitar os limites de velocidade da via e o sinal vermelho do semáforo, não trafegar na contramão e não fazer conversões proibidas. Estamos falando, na verdade, de comportamentos inadequados frente ao que a norma coletiva de trânsito exige de cada um.
4. O que é necessário no enfrentamento do problema
Se pretendemos enfrentar o problema da sinistralidade e mortes por motocicleta de maneira de forma eficaz, é indispensável, antes de tudo, reconhecer:
1) Que estamos diante de um grave problema de saúde pública, com custos sociais elevados para governos e sociedade;
2) Que da maneira como estamos tratando o problema, não estamos conseguindo reduzir mortes e feridos por sinistros com motocicletas;
3) Que a aplicação das ferramentas de engenharia, de fiscalização e de educação não estão tendo eficácia nos seus propósitos;
4) Que há um número importante de condutores não habilitados dirigindo motocicleta sem habilitação ou com CNH de outra categoria;
5) Que há um número razoável de motocicletas que não são licenciadas anualmente e, portanto, estão com documentação irregular;
6) Que as normas de circulação no trânsito valem menos para o condutor de motocicleta do que o ganho de tempo (para todos os motociclistas) e o ganho de tempo e de renda (para motofretes e mototáxi);
7) Que as infrações e multas valem menos para o condutor de motocicleta (não sendo pagas) do que o ganho de tempo para qualquer motociclista, e do que o ganho de tempo e renda para motofretistas e mototaxistas;
8) Que os motofretistas e mototaxistas não têm proteções trabalhistas, exercem atividade por longas horas, sem momentos e locais de descanso, e que são estimulados por empresas de aplicativos, que pagam por produção de entregas;
9) Que há um número significativo de motocicletas em desacordo com as exigências do CTB ou de Resoluções do CONTRAN;
10) Que o custo para regularização da CNH (taxas, cursos, exames médicos) representam um valor importante comparado à renda do motociclista (mesmo para os particulares);
11) Que o custo para regularização da motocicleta (taxa de licenciamento, equipamentos obrigatórios, condições de manutenção) representa também um valor importante comparado à renda do motociclista (mesmo para os particulares);
12) Que a liberação de mototáxi nas cidades aumenta a exposição a riscos e pode aumentar o número de mortos e feridos (caronas), o qual já é alarmante;
13) Que a liberação do mototáxi retira passageiros do transporte público, que é mais seguro e tem caráter de universalidade. Acrescenta-se que a redução de passageiros impacta no custo do sistema que respinga na tarifa pública;
14) Que a motocicleta tem servido a práticas de crimes e assassinatos.
Mesmo bons programas como o Visão Zero e o Vida no Trânsito precisam incorporar esses aspectos que envolvem o “ambiente” das motocicletas nas cidades brasileiras, que vai além das questões de trânsito. Um dos pontos importantes é como regularizar esse “ambiente”, que para muitos motociclistas é sem regras. Sendo questões tipicamente comportamentais, não alcançadas pelas medidas de engenharia de tráfego e pouco eficazes na fiscalização, indaga-se como alterar a escala de valores que impulsiona os motociclistas para a prática atual na condução do veículo.
Antes de tudo, para colocar “a casa em ordem”, e sem prejuízo de outras ações, é necessário:
1) Estabelecer um ambiente minimamente regulamentado, não só no trânsito, mas também nos serviços remunerados com motocicleta;
2) Envolver as autoridades de trânsito dos três níveis de governo e o Sistema Nacional de Trânsito;
3) Envolver outras áreas da administração público dos três níveis de governo;
4) Pensar em como estabelecer um programa de “ganha-ganha” com os motociclistas, por meio de mecanismos de incentivo à regularização, recursos para regularização, porque os custos são elevados para serem bancados por muitos motociclistas;
5) Envolver atores privados beneficiários do motociclismo;
6) Criar mecanismos inibidores de roubos e furtos de motocicletas e de remarcação de chassis.
Este não é um assunto restrito a uma localidade. É um assunto nacional, que envolve os três níveis de governo em vários aspectos.
A partir de um ambiente minimamente organizado, a educação para o trânsito terá maior eficácia, com programas de treinamento, ações educativas e de comunicação, mas com “aderência à nova realidade”. Experiências demonstram que as campanhas de sucesso são aquelas que tem a chamada “cola social”, que comunicam algo tangível que está acontecendo nas ruas.
Não pode ser um esforço pontual, espasmódico, restrito a um momento da gestão pública ou a uma localidade. Pelo número de fatores e entidades envolvidas, deve ser um projeto de Estado, consistente e de longo prazo."