Dia da Consciência Negra: educação antirracista precisa começar na primeira infância e exigir ações contínuas ao longo da vida escolar
Discutir antirracismo desde cedo é uma forma de buscar garantir o pleno desenvolvimento das crianças em todas as suas potencialidades
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Nesta quinta-feira (20), data em que se celebra o Dia da Consciência Negra e que simboliza a luta contra o racismo, é fundamental reforçar que a reflexão e as ações antirracistas não podem se restringir a um único momento ou período do ano.
Elas precisam ocorrer de forma contínua e intersetorial – ou seja, envolvendo todas as esferas da sociedade – e, principalmente, estar presentes na vida das crianças desde a primeira infância.
Discutir antirracismo desde cedo é uma forma de buscar garantir o pleno desenvolvimento das crianças em todas as suas potencialidades. Isso porque o racismo estrutural e institucional começa a produzir efeitos já nos primeiros anos de vida, impactando a autoestima, os vínculos sociais, o desempenho escolar e o acesso a oportunidades.
A pesquisa nacional "Panorama da Primeira Infância: o impacto do racismo", encomendada ao Datafolha pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal e divulgada em 6 de outubro, mostra que uma em cada seis crianças de até 6 anos foi vítima de racismo no Brasil.
Os dados foram coletados em abril deste ano, por meio de entrevistas presenciais realizadas em locais de grande circulação. Ao todo, 2.206 pessoas foram ouvidas, entre elas 822 responsáveis pelo cuidado de bebês e crianças de 0 a 6 anos.
No levantamento, quando questionados se a criança pela qual são responsáveis já sofreu discriminação, 16% responderam que elas já foram vítimas de racismo. Os casos são mais comuns entre crianças de 4 a 6 anos, o que, segundo o Panorama, pode ocorrer porque as mais novas ainda não reconhecem ou não conseguem verbalizar situações de discriminação.
Outro dado que chama atenção é a diferença na percepção do problema. A proporção de responsáveis que acreditam que crianças na primeira infância podem ser vítimas de racismo é maior entre cuidadores pretos e pardos (65%) do que entre brancos (57%).
Primeira infância contra o racismo
O antirracismo precisa ser trabalhado antes mesmo do nascimento, defende a secretária executiva da Primeira Infância do Recife, Luciana Lima. “Ninguém nasce preconceituoso, mas muitas crianças nascem vítimas do preconceito. Se um casal é formado por pessoas de cores diferentes, já existe expectativa sobre a cor da pele, tipo de cabelo, cor dos olhos da criança. E isso é preconceito que vem desde a barriga”, afirmou em entrevista à coluna Enem e Educação.
Um dos exemplos de ação concreta é a parceria com o Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região (TRT-6), que permitiu incluir leituras antidiscriminatórias em 25 espaços do programa Mãe Coruja, na Prefeitura do Recife. “Não falamos apenas de personagens negros; falamos de personagens negros como protagonistas, para que a criança negra se imagine como super-herói, princesa, ganhando um bom futuro”, explica. A curadoria foi realizada por Priscila Galvão, com foco na literatura infantil voltada à antidiscriminação, abrangendo raça, gênero e outras formas de preconceito.
Outra parceria que tem buscado tratar dessa temática desde os primeiros anos da criança é com a UNICEF, por meio da estratégia PIA – Primeira Infância Antirracista, uma campanha de comunicação que oferece materiais informativos e indutores de práticas antirracistas nos diferentes serviços de atendimento às gestantes, crianças negras e indígenas de até 6 anos, além de suas famílias.
“A gente faz formação para que os nossos profissionais atuem na educação, na assistência social e na saúde com esse olhar antidiscriminatório”, explicou a secretária. Segundo ela, essa capacitação é essencial para que as informações circulem e para que as vítimas de racismo compreendam que se trata de uma violência – um crime previsto na Constituição, inafiançável e imprescritível.
Luciana Lima reforça que esse trabalho não se limita às orientações formais: o brincar, destaca, é coisa séria e também contribui para essa compreensão. "O brincar é a coisa mais séria que existe na infância, porque é através dele que a gente pode trazer várias mensagens, pode ensinar sobre diversidade. É através do brincar também que a gente consegue escutar aquela criança", disse.
Por isso tem sido realizadas oficinas de montagem de bonecas africanas e contação de histórias que retratam a trajetória da população negra no Brasil, promovendo uma educação lúdica e consciente sobre a identidade e a formação cultural do país.
Antirracismo na rotina escolar
A pesquisa revelou que creches e pré-escolas são os ambientes onde mais se registra discriminação racial contra crianças: 54% dos cuidadores afirmam que os pequenos já vivenciaram esse tipo de situação em unidades de educação infantil — 61% na pré-escola e 38% nas creches.
É preciso compreender que a escola é o primeiro espaço de socialização da criança, onde ela passa grande parte do tempo e, portanto, um ambiente que precisa promover proteção e acolhimento.
Na Escola Municipal Adauto Pontes, no bairro do Jordão Alto, no Recife, que atende turmas da Educação Infantil até a Educação de Jovens e Adultos (EJA), a discussão sobre o antirracismo é prioridade ao longo de todo o ano letivo. As atividades apresentadas na semana do Dia da Consciência Negra são apenas a culminância de um trabalho contínuo.
A gestora da unidade, Juliana Farias, que também é pesquisadora das relações entre raça, gênero e classe, destaca que uma das principais estratégias para enfrentar e combater a discriminação dentro da escola foi a “Caixa do Bullying”, espaço onde os alunos registram anonimamente situações de bullying e racismo vivenciadas na escola ou fora dela. O material é lido mensalmente pela equipe pedagógica, que encaminha os casos conforme a necessidade.
Juliana relata que alguns episódios exigiram a atuação da Assistência Social e da psicóloga da rede, além da convocação das famílias. Um dos relatos mais marcantes foi o de uma estudante do 5º ano, que descreveu ter sido vítima de racismo por parte de um familiar durante o recesso escolar. Estudantes também denunciaram atitudes discriminatórias entre colegas, mostrando que o tema tem ganhado compreensão entre eles.
“A gente fala muito em educação antirracista, mas, na verdade, a educação não existe se ela não for antirracista. Porque é aqui na escola que eles vão aprender isso e levar para as suas famílias. Por isso esse trabalho é tão importante”, afirmou a gestora, ressaltando que muitas manifestações de racismo reproduzidas pelas crianças têm origem no ambiente familiar. Por isso, a escola atua para que os alunos reconheçam o racismo e consigam levar esse conhecimento para casa.
As famílias também são convocadas ao longo do ano para participar das ações e rodas de conversa. A tradicional “feira de conhecimentos” da escola foi substituída pela Mostra da Consciência Negra. “Pra que falar de qualquer outro tema se a gente não está falando do racismo?”, pontuou Juliana Farias.
O trabalho desenvolvido da Escola Municipal Adauto Pontes, também busca desconstruir estigmas relacionados às religiões de matriz africana, ainda fortemente discriminadas. A gestora afirmou que uma comunidade evangélica do entorno participou ativamente das atividades culturais sobre a ancestralidade negra. “Somos uma população majoritariamente negra. Essa é a nossa história. E isso não é ruim, não é do mal. Mas tudo o que é preto foi associado ao feio, ao obscuro, ao diabólico. Nosso trabalho também é combater isso", disse.
Equidade racial na educação exige mais de 15 anos
Ignorar a desigualdade racial e os impactos do racismo estrutural na formação das crianças significa permitir que essa violência repercuta ao longo de toda a trajetória escolar. Essa desigualdade aparece desde a primeira infância e segue até o fim da educação básica — e os dados mostram que o Brasil ainda está longe de superá-la.
O país deve levar mais de 15 anos para alcançar equidade racial e socioeconômica na conclusão do Ensino Médio, caso mantenha o ritmo de avanços observado na última década. A estimativa é de um estudo do Todos Pela Educação, divulgado nessa segunda-feira (17), com base em dados do IBGE.
O levantamento aponta diferenças significativas quando a análise considera cor ou raça. Em 2025, a taxa de conclusão foi de 81,7% entre estudantes brancos e amarelos e de 69,5% entre pretos, pardos e indígenas (PPI) — uma distância de 12,2 pontos percentuais.
Na Escola de Referência em Ensino Médio (Erem) Professor Fernando Mota, localizada no bairro de Boa Viagem, no Recife, a matemática tem sido utilizada como ferramenta de combate ao racismo. Segundo o professor Valfrido Costa, que ministra a disciplina, “a matemática vai além de números, operações, espaços, fórmulas ou do simples tratamento de informações, grandezas e medidas”.
“Ela também cumpre um papel social e, com base nisso, estamos há alguns anos trabalhando para valorizar e divulgar a matemática de forma mais popular. Queremos mostrar que todos têm acesso a ela, independentemente de raça ou gênero. E, dentro dessa perspectiva, por meio da Lei nº 11.645/2008, que trata da cultura africana e dos povos originários nas escolas, estamos plantando uma semente”, explicou o professor.
Essa semente tem contribuído não apenas para trazer o debate ao centro das discussões entre os estudantes, mas também para abrir espaço para que eles relatem vivências relacionadas ao racismo. “Muitas vezes, por falta de orientação familiar ou comunitária, eles não sabem que estão sofrendo preconceito. Mas quando esses relatos chegam até nós, contamos com a psicóloga Ítala Ferreira, que vem trabalhando fortemente nesse sentido — mostrando o que é racismo e, acima de tudo, como combatê-lo”, afirmou o docente.
O enfrentamento acontece de forma interdisciplinar. No ano passado, por exemplo, a feira de matemática teve como tema “A matemática e o continente africano: um passeio pela África”, permitindo que os estudantes conhecessem a história de diversas personalidades negras que atuaram nas áreas de matemática, física e tecnologia, fortalecendo o sentimento de pertencimento e ancestralidade. No segundo semestre, a escola promoveu uma feira literária com obras de autores negros e indígenas.
"Agora nós estamos concluíndo o projeto História do Turbante, que conta como a matemática pode auxiliar na produção e confecção do turbante com suas voltas e amarrações. Falamos de geometria plana e espacial, de simetria, etc", explicou Valfrido. Participaram dessa oficina a psicologa Ítala Ferreira e o professor Felipe Aiala de Mello.