Após nova decisão judicial, curso de Medicina do Pronera na UFPE volta a ser autorizado
Em meio às críticas e ações judiciais, universidades e instituições federais, além de entidades de educação e saúde, têm manifestado apoio ao Pronera

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A Justiça Federal derrubou a segunda liminar que suspendia o edital do processo seletivo para o curso de Medicina do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), ofertado pelo campus Caruaru da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
A decisão foi divulgada na manhã desta sexta-feira (10) pelo reitor da UFPE, Alfredo Macedo Gomes, por meio de suas redes sociais. “Uma vitória importante da universidade pública, da autonomia, da justiça social. Vamos seguir, portanto, firmes nas nossas ações para concretizar as políticas da universidade e a política consolidada do Pronera”, destacou Gomes em um vídeo publicado em seu perfil no Instagram.
O desembargador Fernando Braga Damasceno, do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5), acolheu os argumentos da Advocacia-Geral da União (AGU), tornando a liminar inválida e garantindo a realização do certame no próximo domingo (12).
Em sua decisão, o magistrado manteve “inabalável a avaliação do risco de dano grave” da suspensão da prova e ainda autorizou, “até a decisão da Quarta Turma deste TRF5, o regular andamento da seleção impugnada, restabelecendo a validade e eficácia da Resolução 01/2025 do Conselho Universitário da UFPE e o Edital Prograd nº 31/2025 da UFPE”.
Na última terça-feira (7), uma liminar proferida pela 9ª Vara da Justiça Federal de Pernambuco, após ação movida pelo vereador do Recife Thiago Medina (PL), havia suspendido novamente a oferta de vagas em Medicina por meio do Pronera.
Entre os pontos questionados pelo parlamentar ao ingressar com a ação está “a ausência de prova escrita idônea, pois o processo seletivo se limita a uma redação e à análise do histórico escolar, sem exames objetivos em áreas como biologia, química e matemática, considerados indispensáveis para o ingresso em Medicina.”
Medina argumentou que a conduta da universidade “afronta a moralidade administrativa e coloca em xeque a formação dos médicos brasileiros”. Na liminar, o vereador do Recife não apenas pedia a suspensão imediata do edital, como também a anulação definitiva ao final do processo.
A iniciativa vem sendo alvo de críticas de políticos, como o deputado federal e ex-ministro da Educação Mendonça Filho (União Brasil), e entidades médicas, como o Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe), a Sindicato dos Médicos de Pernambuco (Simepe), Associação Médica de Pernambuco (AMPE) e Academia Pernambucana de Medicina (APM).
"A gente não pode aceitar de forma alguma que a Educação brasileira seja transformada num palco de oportunismo político-ideológico", afirmou Mendonça, que protocolou uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para derrubar o edital.
O que dizem as entidades médicas
Por nota, as entidades se manifestaram contrárias à condução do processo seletivo, afirmando que "a Constituição Federal, em seu artigo 206, assegura a isonomia e a igualdade de condições para o acesso às universidades públicas, princípio que deve nortear todas as formas de ingresso no ensino superior."
"Reconhecemos que há jurisprudência consolidada legitimando políticas afirmativas, desde que aplicadas de forma proporcional, equilibrada e transparente. Ressaltamos, contudo, que a criação de um processo seletivo exclusivo, paralelo ao sistema nacional, sem utilização do Enem e do Sisu como critérios de acesso, afronta os princípios da isonomia e do acesso universal, além de comprometer a credibilidade acadêmica e representar um precedente grave e perigoso para a educação médica no Brasil", destaca o pronunciamento.
As entidades médicas de Pernambuco entendem que o processo seletivo do Pronera "viola a igualdade de oportunidades e desconsidera os mecanismos nacionais já consolidados, que garantem transparência e equidade no ingresso ao ensino superior."
Por fim, Cremepe, Simepe, AMPE e APM afirmam que não são contrários a políticas de inclusão, mas que defendem que elas sejam justas, proporcionais e alinhadas com os marcos legais vigentes.
Entenda os critérios do edital
O edital para o curso de Medicina é fruto de uma parceria entre o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a UFPE. Foram abertas 80 vagas: 40 para ampla concorrência e outras 40 destinadas a candidatos que se enquadram nas modalidades de ações afirmativas (cotas).
Segundo o edital, cujas inscrições se encerraram no dia 20 de setembro, podiam se candidatar assentados da reforma agrária e integrantes de famílias beneficiárias do Crédito Fundiário; educandos egressos de cursos promovidos pelo Incra; educadores que atuam junto às famílias beneficiárias; acampados cadastrados pelo instituto; e pessoas quilombolas.
Para participar da seleção, os candidatos devem ter concluído o Ensino Médio antes da inscrição e apresentar a documentação exigida que comprove o vínculo com o Pronera.
O processo de avaliação é dividido em duas etapas eliminatórias. Na primeira, a comissão do Incra analisa os documentos enviados para verificar se o candidato pertence ao público-alvo do programa. A ausência de comprovação ou o envio de documentos falsos resulta na eliminação imediata.
Na segunda etapa, de caráter eliminatório e classificatório, os candidatos passam por duas avaliações com pesos diferentes. A primeira é uma prova presencial de redação em Língua Portuguesa, com peso 6, em formato dissertativo-argumentativo e nota mínima de 5,0, conforme os critérios da Portaria MEC nº 391/2000.
A segunda é a análise do histórico escolar do Ensino Médio, com peso 4, considerando as notas de Língua Portuguesa, Biologia e Química dos três anos, cuja média aritmética simples é multiplicada pelo peso para compor a pontuação final. Segundo a UFPE, esse modelo de avaliação já é utilizado em outros vestibulares destinados a públicos específicos, como o Vestibular Quilombola e o Intercultural Indígena.
A UFPE afirmou que a proposta de criação de uma turma extra de graduação em Medicina seria ofertada através de vagas supranumerárias, tendo sido aprovada pelo Conselho Superior da UFPE, por meio da Resolução nº 1, de 29 de julho de 2025.
Além disso, a universidade reiterou que as vagas do Pronera não são exclusivas para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), mas sim destinadas a um grupo mais amplo de assentados e acampados reconhecidos pelo Incra, além de quilombolas.
Entidades saem em defesa do Pronera
Desde que o programa virou alvo de ações judiciais e críticas a respeito da sua forma de acesso ao curso de Medicina, diversas universidades públicas e outras entidades ligadas à educação e saúde se manifestaram a favor do Pronera.
A Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) manifestou apoio e solidariedade ao programa, “reconhecendo-o como uma iniciativa fundamental para a democratização do ensino superior e a justiça social no Brasil.”
“A educação é um direito social e deve alcançar todos os territórios, especialmente pessoas e grupos historicamente excluídos das universidades públicas. Esta iniciativa, portanto, enfrenta a herança de exclusão estrutural que marca a trajetória de assentados rurais, comunidades quilombolas e povos tradicionais do campo”, defendeu a ANPEd.
O Diretório Acadêmico de Medicina Josué de Castro, da UPE, também emitiu uma nota afirmando que “o Pronera, ao permitir que filhos e filhas do campo acessem a formação médica, representa uma oportunidade concreta de desenvolver no território profissionais comprometidos com suas comunidades e com a efetivação do SUS em regiões historicamente negligenciadas.”
O Grupo de Trabalho de Medicina Rural da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade também manifestou apoio, destacando outras ações encabeçadas pela UFPE. “Ela criou, no semiárido pernambucano, em Caruaru, o primeiro Programa de Residência em Medicina de Família e Comunidade – ano adicional em Saúde da População do Campo, Florestas e Águas –, alinhando-se à Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, Florestas e Águas. Essas ações pioneiras fazem da UFPE uma instituição de referência e um modelo a ser seguido nacional e internacionalmente.”
A reitora da Universidade de Brasília (UnB), Rozana Naves, também saiu em defesa do Pronera. “A UnB, como pioneira das cotas nas universidades públicas, deu um passo fundamental para o acesso de grupos socialmente excluídos das universidades. Por isso, nos solidarizamos com a UFPE pela coragem de ampliar a democratização do ensino superior, reafirmando que a universidade é um direito de todos”, disse.
O Conselho Deliberativo da Fiocruz também se manifestou a favor das vagas ofertadas pelo Pronera. “Como tem sido noticiado, recentemente o edital de chamamento ao curso foi contestado judicialmente, sob o argumento de violar a universalidade do acesso, gerando privilégios. A concepção de que as ações de saúde devem ser orientadas por um olhar sobre os territórios e as necessidades locais tem sido validada pela experiência das últimas décadas e constitui um marco do pensamento da Reforma Sanitária brasileira”, destacou.
“Ao tratarem de forma distinta os segmentos sociais que têm necessidades e condições de vida igualmente distintas, as políticas públicas não promovem privilégios, mas, ao contrário, traçam estratégias para alcançar uma maior justiça social — concepção que remete aos princípios fundantes do SUS brasileiro”, pontuou a Fiocruz em outro trecho do comunicado.
Senado convoca ministros para prestar esclarecimentos
Enquanto o debate sobre o curso de Medicina do Pronera se amplia no campo político, os ministros da Educação, Camilo Santana, e do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, foram convocados pelo Senado para prestar esclarecimentos sobre os critérios do edital.
O requerimento, de autoria do presidente da Comissão de Fiscalização e Controle (CTF), senador Dr. Hiran (PP-RR), foi aprovado na última quarta-feira (8). Além da presença dos ministros, também foi aprovado um convite para o reitor da UFPE, Alfredo Macedo Gomes, explicar os detalhes do processo seletivo.
“Um curso de Medicina com viés absolutamente ideológico, o que nos causa uma perplexidade extrema. A classe médica se assustou, e eu, como presidente da Frente Parlamentar da Medicina, fiquei extremamente preocupado. Vamos abrir um precedente muito perigoso. Eu nunca vi isso. Isso é uma novidade muito ruim para a formação do médico”, afirmou Dr. Hiran, segundo informações da Agência Senado.
A coluna Enem e Educação solicitou um posicionamento ao Ministério da Educação (MEC), que informou apenas que “as universidades federais, nos termos do artigo 207 da Constituição Federal de 1988, têm autonomia para decidir suas políticas próprias de acesso”.
O MEC acrescentou que essa autonomia inclui a celebração de convênios, como nos editais voltados a beneficiários do Pronera, programa que promove a educação do campo para populações das áreas de reforma agrária e territórios quilombolas.