Além da vaga: a realidade da inclusão escolar de crianças neuroatípicas em Pernambuco

Apesar do direito garantido por lei, mães de crianças neuroatípicas enfrentam a dura realidade da falta de estrutura e profissionais nas escolas

Por Mirella Araújo Publicado em 08/08/2025 às 16:36 | Atualizado em 08/08/2025 às 22:51

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A luta pela inclusão verdadeira de crianças neuroatípicas nas escolas não termina com a conquista da vaga — que, por lei, é obrigatória. Ela continua diariamente para garantir que esses alunos tenham acesso a uma educação de qualidade.

Mães batalham para que seus filhos sejam vistos além do laudo, mas enfrentam a falta de estrutura e de profissionais que possam auxiliar os professores no acolhimento e apoio no desenvolvimento dessas crianças.

Os relatos ouvidos pela coluna Enem e Educação são muito semelhantes. Desde a desconfiança inicial sobre algo diferente no comportamento das crianças, passando pela descoberta do diagnóstico, acompanhada dos medos que imediatamente cercam as mães em relação ao futuro dos filhos e à garantia de direitos básicos, como saúde e educação.

Em Pernambuco, 87% dos diretores de escolas públicas afirmam ter alunos neuroatípicos matriculados. No entanto, apenas 52% dizem conseguir oferecer o Atendimento Educacional Especializado (AEE) a todos os estudantes que dele necessitam.

O dado é resultado de um levantamento feito pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE-PE), que aplicou cerca de 11 mil questionários a profissionais da educação em 828 escolas públicas (estaduais e municipais) de 13 municípios que representam as 16 Gerências Regionais de Educação (GREs).

"Diagnóstico não é sentença"

Daniela Pessoa, 37 anos, começou a desconfiar que o filho poderia ser neuroatípico aos seis meses de idade, quando ele não respondia aos estímulos sonoros. Com o tempo, outros comportamentos chamaram a atenção. A criança, que hoje tem quatro anos, só começou a andar no ano passado.

“Tudo nele foi muito lento. Então, com dez meses, eu comecei a correr atrás de médico, mas tudo no SUS é mais difícil. O diagnóstico veio quando ele tinha 1 ano e 7 meses”, contou.

Após o laudo de Transtorno do Espectro Autista (TEA), Daniela, que trabalhava como atendente de farmácia, precisou se dedicar exclusivamente aos cuidados com o filho.

“Antes do diagnóstico, estávamos vivendo um momento de incerteza, sem saber o que ele tinha. Mas, depois que descobrimos, veio o alívio, porque comecei a entender o que ele tem e, o mais importante, o diagnóstico não é uma sentença — é o caminho para buscar o melhor para o nosso filho.”

Por entender que há um déficit nas redes municipais na oferta do Atendimento Educacional Especializado , Daniela contou à coluna Enem e Educação que demorou a matricular o filho na escola.

“Na minha cabeça, meu filho é uma criança vulnerável. Até hoje ele é não verbal, depende de uma pessoa 24 horas perto dele. Fui colocá-lo na creche, mesmo com medo, mas me disseram que não precisava me preocupar, porque ele teria direito a um professor e dois Auxiliares de Desenvolvimento Infantil (ADIs). Ou seja, três pessoas para, supostamente, cuidar dele. Só que, na realidade, não é assim”, lamentou.

A criança estuda no Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) do Jordão Baixo, no Recife. Segundo a mãe, a turma de dois anos tem 11 crianças — seis com laudo e cinco em processo de investigação —, mas não há profissionais suficientes para atender à demanda. Por isso, a unidade estaria funcionando em esquema de rodízio.

“No papel, é uma coisa linda e maravilhosa, mas, na prática, não funciona. Na cabeça da gestão municipal, eles acham que incluir é pegar uma sala, colocar um monte de crianças típicas e atípicas juntas — e isso já é inclusão. Se a criança está aprendendo e interagindo, tanto faz. É só número para dizer que a prefeitura trabalha.”

Daniela reforça que o filho tem dificuldade de interagir e não brinca com os colegas. “Não existe preparo para incluí-lo de verdade nas atividades”, concluiu. “Quando, supostamente, a criança está se adaptando ao ambiente, pensando que vai ter aquela aula e não tem, no dia seguinte se desregula, fica agitada. É algo que quebra a rotina”, criticou.

Faltam profissionais, e rotina quebrada prejudica o aprendizado

A autônoma Mércia Elaine da Silva, 39 anos, é mãe de um menino de 7 anos, diagnosticado com TEA e Epilepsia. O filho dela também não frequenta a escola todos os dias, por falta de profissional especializado para acompanhar os alunos neuroatípicos matriculados na unidade de ensino.

“Uma das escolas em que tentei matricular meu filho não quis aceitar, porque já tinha um número excessivo de alunos. Outra escola disse que não tinha como disponibilizar um acompanhante”, relatou.

Atualmente, a criança estuda na Escola Municipal Pastor José Munguba Sobrinho, no bairro do Jordão, no Recife. “A escola é excelente, mas tem um déficit de profissionais para atender à quantidade de crianças neuroatípicas que há lá”, afirmou Mércia.

Ela explica que o filho é considerado nível um de suporte, mas que o diagnóstico de epilepsia traz desafios adicionais ao seu desenvolvimento.

“É tudo muito vago no setor público, tanto os atendimentos na saúde quanto na educação e na inclusão. Se as mães não se desdobrarem de um lado e de outro, as crianças ficam sem assistência”, criticou.

Maísa Barcellos, 54 anos, conhece bem a realidade dentro e fora das salas de aula quando o assunto é Educação Especial. Pedagoga e professora da rede municipal, ela também é mãe de um menino de 12 anos diagnosticado com TEA, Síndrome de Down e Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH).

O filho está matriculado na Escola Municipal Ageu Magalhães, na Vila Popular, em Olinda. Ele frequentava as aulas regularmente até junho, mas, por falta de um agente de apoio, está sem poder ir à escola desde então.

Maísa já havia recorrido ao plano de saúde para conseguir um Acompanhante Terapêutico (AT) — profissional que oferece suporte individualizado a crianças autistas, auxiliando no desenvolvimento de habilidades sociais, cognitivas e na adaptação ao ambiente escolar. No entanto, mesmo com o AT, o filho também precisaria de um AADEE, responsável por auxiliar nas atividades de alimentação, higiene, locomoção e demais necessidades durante o período escolar.

 “Essa situação é horrível, porque atrasa o desenvolvimento dele cada vez mais. Ele já tem muitos comprometimentos, e, quando está conquistando ou aprendendo alguma coisa, há essa quebra de rotina e voltamos à estaca zero. Por eu trabalhar com Educação e conhecer todo o processo, fico ainda mais angustiada”, afirmou Maísa.

A coluna Enem e Educação procurou a Secretaria de Educação do Recife para questionar sobre a situação das crianças mencionadas nesta reportagem. 

Por meio de nota, a pasta negou que a Escola Municipal Pastor José Munguba Sobrinho esteja realizando rodízio de estudantes por falta de AADEEs. “A pasta esclarece que, excepcionalmente nesta sexta-feira (8), duas turmas foram liberadas em razão da aula-atividade dos professores, mas que todos os alunos estão sendo acompanhados regularmente pelos auxiliares”, informou.

Ainda segundo a Secretaria de Educação, o resultado final do concurso para a contratação de 400 AADEEs foi homologado e publicado no Diário Oficial no dia 1º de julho. “As nomeações ocorrerão ao longo do segundo semestre.”

A coluna também solicitou posicionamento à Secretaria de Educação de Olinda e aguardará retorno para atualização da matéria.

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A professora Maísa Barcellos, tem um filho de 12 anos diagnosticado com TEA, Síndrome de Down e TDAH - Cortesia

Sem diálogo entre saúde e educação, inclusão escolar continua falha

Os depoimentos, que não se restringem a essas três mães, refletem os inúmeros desafios enfrentados por tantas outras responsáveis por crianças com deficiência, TEA, TDAH, Síndrome de Down, dislexia e transtornos globais do desenvolvimento.

Eles reforçam a urgência de que o acompanhamento médico esteja alinhado com o pedagógico, garantindo um suporte integral para o desenvolvimento dessas crianças.

A diretora da Associação Novo Rumo, Luciana Dias, afirmou, em conversa com a coluna Enem e Educação, que os problemas se espalham por todas as regiões do Estado.

A instituição, que funciona há 19 anos no bairro de Casa Amarela, na Zona Norte do Recife, atende mais de 140 famílias de baixa renda e oferece atendimentos de fonoaudiologia, psicopedagogia, fisioterapia, psicomotricidade aquática e relacional.

Embora esteja localizada na capital, a Novo Rumo recebe crianças e adolescentes não apenas da Região Metropolitana, mas também de municípios do interior, como Gravatá, Chã Grande, Barra de Guabiraba e Cupira.

“Tem crianças que, se não tiverem um agente de apoio, não conseguem ir para a escola, porque não haverá ninguém para dar o suporte, fora a falta de material pedagógico”, afirmou Luciana.

Ela também destacou que as salas estão muito cheias, o que dificulta o trabalho do professor em promover uma inclusão verdadeira.

Sem uma comunicação efetiva entre os profissionais da educação e os da saúde, o processo de aprendizagem se torna ainda mais desafiador. “Quando a gente não tem essa informação, não deixamos de trabalhar, a criança até evolui. No entanto, poderia ter um ganho maior se a escola tivesse essa parceria”, pontuou.

Segundo ela, ainda há resistência por parte de muitas escolas em interagir ou buscar informações que possam contribuir para aprimorar as abordagens pedagógicas voltadas às crianças neuroatípicas.

 

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Associação Novo Rumo atua há 19 anos com crianças com Síndrome de Down, autismo e TDAH - Cortesia

PNE prevê universalização da Educação Especial

Durante o seminário sobre o novo Plano Nacional de Educação (PNE) 2024-2034, realizado no dia 4 de agosto na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), a secretária de Educação do Recife, Cecília Cruz, destacou a importância da meta 4 do plano atual.

O objetivo é garantir o acesso universal à educação básica e ao atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino, para crianças e jovens de 4 a 17 anos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação.

“Recife hoje é a única capital que tem uma política posta e estruturada de educação especial e inclusiva. Quando a gente roda o país em busca de referência, ainda se fala muito pouco sobre o que é uma educação inclusiva para que a gente atenda as nossas crianças com qualidade”, afirmou Cecília.

A secretária ressaltou que é essencial que as metas do novo PNE sejam realistas e flexíveis, respeitando as capacidades das redes de ensino. “O PNE, quando coloca como prioridade essas crianças, tem que garantir que as redes públicas vão ser capazes de apoiar com qualidade para atender essas crianças”, disse.

No entanto, na ocasião, Cecília Cruz também reconheceu o crescimento da demanda por atendimento educacional especializado, incluindo alunos oriundos da rede privada.

O promotor de Justiça Salomão Abdo Aziz Ismail Filho, da 22ª Promotoria de Justiça de Cidadania da Capital, destaca que as redes de ensino precisam, de fato, priorizar a formação e capacitação dos professores em Educação Especial.

Segundo ele, o Estado, por contar com uma rede ampla e docentes bem qualificados, tem condições de oferecer capacitação aos professores de outros municípios por meio de convênios específicos, o que poderia contribuir para ampliar o número de profissionais atuando no Atendimento Educacional Especializado.

O promotor também comentou um compromisso recente assumido pela gestão municipal: “Recentemente, em uma audiência pública sobre a rede municipal de ensino do Recife, o município assumiu o compromisso de ter um professor de AEE em todas as escolas da rede”, disse à coluna.

Por fim, Salomão reforça que, além dos profissionais, a inclusão exige outros elementos fundamentais, como salas de recursos de qualidade e transporte escolar adequado para atender todas as crianças da Educação Especial. “Os desafios de inclusão são grandes. É preciso garantir uma consciência inclusiva também no âmbito das escolas particulares. Em algumas situações, é necessário assegurar apoio individualizado no ambiente escolar e garantir que os espaços sejam, de fato, inclusivos”, concluiu.

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