Escolas de Pernambuco enfrentam falhas estruturais e na formação para atender alunos neuroatípicos, aponta estudo
Em PE, 87% dos diretores afirmam ter alunos neuroatípicos, mas só 52% conseguem garantir o Atendimento Educacional Especializado (AEE) necessário

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O Brasil ainda enfrenta grandes desafios para garantir a inclusão escolar de estudantes neuratípicos e com deficiência — não apenas no acesso, mas também na aprendizagem, no bem-estar e no desenvolvimento integral destes alunos. Entre os principais obstáculos estão a falta de infraestrutura acessível nas escolas e a carência de formação adequada para os profissionais da educação.
Em Pernambuco, esse cenário se repete, com desigualdades entre as regiões do estado. O Plano Estadual de Educação prevê uma série de ações voltadas ao acompanhamento pedagógico e à permanência dos estudantes nas escolas, além da oferta do Atendimento Educacional Especializado (AEE) para alunos com deficiência, Transtorno do Espectro Autista (TEA), transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação.
Outra meta importante do plano estadual é a formação de equipes multidisciplinares, com a presença de psicólogos, pedagogos, assistentes sociais, fisioterapeutas, fonoaudiólogos e professores itinerantes nas unidades de ensino. No entanto, essa estrutura ainda está longe de se concretizar na prática.
Um levantamento feito pelo Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco (TCE-PE) apontou as fragilidades no sistema público de ensino. O órgão aplicou cerca de 11 mil questionários a profissionais da educação em 828 escolas públicas (estaduais e municipais) de 13 municípios que representam as 16 Gerências Regionais de Educação (GREs).
A pesquisa considerou tanto os aspectos pedagógicos quanto a articulação entre educação e saúde nos municípios analisados. As cidades participantes do estudo foram: Afogados da Ingazeira, Araripina, Arcoverde, Caruaru, Floresta, Garanhuns, Limoeiro, Nazaré da Mata, Palmares, Petrolina, Recife, Salgueiro e Vitória de Santo Antão.
Atendimento Educacional Especializado ainda é insuficiente
De acordo com os dados do TCE, 87% dos diretores de escolas afirmaram ter alunos neuroatípicos matriculados. No entanto, apenas 52% dizem conseguir oferecer o AEE a todos os estudantes que dele necessitam. Entre os 17.555 alunos neuroatípicos matriculados, mais da metade (52%) são autistas, totalizando 9.070 estudantes nas escolas analisadas.
O AEE é um serviço previsto em políticas de educação inclusiva e tem como objetivo eliminar barreiras à aprendizagem e à participação dos estudantes. No entanto, a ausência de profissionais especializados ainda é o maior obstáculo à sua oferta, apontado por 39% dos gestores. A falta de espaços físicos adequados é mencionada por 34% das escolas.
Outro dado preocupante é que 57% dos diretores relataram não contar — ou contar de forma insuficiente — com profissionais de apoio. Isso representa 3.545 estudantes sem acompanhamento especializado. E mesmo quando há esse apoio, a qualificação também se torna um problema: 57% dos 3.244 profissionais de apoio que responderam ao questionário afirmaram não ter capacitação para a função.
Esses números reforçam a urgência de políticas públicas voltadas à eliminação das barreiras físicas, pedagógicas e sociais que impedem o acesso efetivo à educação. Sem o suporte necessário, muitos alunos continuam tendo a sua aprendizagem e o desenvolvimento da convivência escolar.
Formação não se aprofunda sobre a inclusão de fato
Para Helena Possidônio, professora dos cursos de pós-graduação em Autismo e em Psicopedagogia Clínica e Institucional do CEFFAP, e sócia-diretora do Instituto Giovanna Stefany, no Recife, as dificuldades na formação desses profissionais, embora mais presentes na rede pública, também ocorrem em escolas particulares.
E isso não se dá por falta de amparo legal. Segundo a psicopedagoga, que há mais de 11 anos atua com prevenção, intervenção e alfabetização de pessoas com necessidades educacionais especiais em todas as idades, mesmo com leis vigentes e discussões em curso no Legislativo, ainda há desconhecimento, por parte dos gestores escolares — tanto da rede pública quanto da privada — sobre os direitos dos estudantes e o papel de cada profissional na garantia de uma educação inclusiva e de qualidade para crianças neuroatípicas e com deficiência.
"Temos a Lei nº 13.146/15, conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, que garante o direito à educação inclusiva, o que implica na participação plena de todos. E a Lei nº 12.764/12, que instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com TEA, assegura o direito ao acompanhante especializado, quando houver necessidade comprovada", exemplificou.
É justamente nesse ponto que as esferas competentes deveriam fiscalizar o cumprimento desses instrumentos legais nas redes de ensino. Acontece que a própria formação dos professores e demais profissionais que atuam nas escolas muitas vezes não é compatível com o que a legislação exige.
Ainda segundo os dados do TCE, 231 de 590 professores do AEE, dos 13 municípios analisados, não possuem formação específica em Educação Especial.
"Por exemplo, na graduação, nos cursos de Pedagogia, pouco se fala sobre o que é realmente inclusão. Normalmente há um ou dois módulos que tratam do assunto, mas nada muito específico. Então esse professor não está preparado para receber esse aluno", afirmou Helena em entrevista à coluna Enem e Educação.
Além da falta de formação voltada à educação especial, as redes também enfrentam dificuldades para oferecer profissionais de apoio em quantidade suficiente. "Mas veja como são as coisas: o professor regente é, no mínimo, formado em Pedagogia, mas o aluno com deficiência, que tem mais demandas, acaba sendo acompanhado por um profissional que ainda nem se formou — um estagiário de Pedagogia. Ele não tem a formação completa especializada para acompanhar uma criança com dificuldades e tantas necessidades", ressaltou.
Na Comissão de Educação (CE) da Câmara dos Deputados, está em tramitação o Projeto de Lei nº 1.049/2024, que propõe que o acompanhante especializado tenha formação de nível técnico ou superior, com conteúdos nas áreas de pedagogia e saúde.
O texto é de autoria do deputado federal Felipe Saliba (PRD-MG) e ainda aguarda parecer do relator, o deputado federal Wilson Santiago (REPUBLIC-PB), para conseguir avançar na Casa.
Falta de preparo e apoio dificulta inclusão escolar
A professora do Atendimento Educacional Especializado (AEE) da rede municipal do Recife, Gerluce Dias Maciel, afirma que muitos docentes ainda se sentem despreparados para lidar com momentos de desorganização dos estudantes neuroatípicos.
Em entrevista à coluna Enem e Educação, ela destacou que as formações quando são ofertadas aos docentes regulares, deveriam estar mais conectadas à realidade das salas de aula.
Em um caso recente, uma criança começou a apresentar inquietação e episódios de agressividade ao iniciar uma nova rotina, conciliando a escola com terapias. A professora não conseguiu perceber de imediato, que a mudança era por causa da nova rotina.
“Conversei com a família para entender melhor e depois orientamos a professora. Explicamos que era uma fase de adaptação. A criança mudou toda a rotina e, como não é oralizada, expressa o cansaço de outras formas”, contou Gerluce.
Para ela, a falta de formação prática contribui para esse tipo de dificuldade. “Muitos professores não tiveram acesso a esse tipo de orientação. E com o aumento da diversidade nas turmas, esse despreparo pesa ainda mais”, ressaltou.
Ela também endossa a necessidade de reforço no quadro de profissionais de apoio. “Temos uma sala com oito crianças com laudo, sendo cinco com TEA nível 3 de suporte, e apenas uma AADEE. Recentemente conseguimos alguns estagiários, mas o ideal seria um profissional para cada aluno”, relatou.
Além de não terem a formação completa, a questão do estágio envolve o tempo temporário de vínculo, o que compromete a criação de um ambiente seguro e estável. “Essas crianças precisam de confiança e previsibilidade, algo que se perde com a troca constante de profissionais”, explicou.
A Secretaria de Educação do Recife também tem sido pressionada a realizar novas convocações por aprovados no último concurso público para o cargo de AADEE. Há relatos recorrentes de que alunos têm deixado de frequentar a escola por falta de apoio, mesmo com indicação formal da necessidade.
Em resposta, a pasta tem afirmado que as novas convocações estão previstas para o segundo semestre.
Falta de integração entre escola e saúde é urgente
Especialistas apontam a articulação entre educação e saúde como fundamental para garantir o atendimento adequado aos estudantes com necessidades específicas. Em vez de agir de forma isolada, professores, terapeutas, psicólogos e outros profissionais deveriam trabalhar de forma colaborativa, trocando informações e acompanhando em conjunto o desenvolvimento dos alunos.
Essa integração é importante para planejar melhor as atividades, adaptar abordagens e lidar com questões emocionais ou comportamentais. No entanto, ainda é exceção na maioria das escolas.
Dados do levantamento do TCE mostram ainda que 69% dos profissionais de apoio afirmaram não manter contato com profissionais da saúde. Apenas 16% disseram ter comunicação permanente com terapeutas ou médicos.
“Uma única criança já demanda atenção constante. Por isso, precisamos de equipes que atuem de forma interdisciplinar, em que os profissionais conversem entre si, construam planos de ação e acompanhem juntos a rotina escolar do aluno. Essa parceria entre escola, família e saúde é indispensável”, afirma a psicopedagoga Helana Possidônio.
Essa falta de diálogo também se reflete na elaboração do Plano de Atendimento Educacional Especializado (PAEE), documento que define as estratégias e os recursos necessários para cada aluno. Segundo o estudo do TCE-PE, 65% dos professores regulares não se sentem preparados para colaborar na construção desse plano — um reflexo direto da formação ainda limitada para a educação inclusiva.
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