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Arte e paradoxo na literatura de Aline Bei

A autora, que participou da XV Bienal Internacional do Livro de Pernambuco no sábado (4), fala sobre sua trajetória na escrita e seu processo criativo

Por Laura Martiniano Publicado em 06/10/2025 às 16:22

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O segundo dia de celebração literária da XV Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, ocorrido no último sábado (4), propôs ao público passeios sobre temáticas diversas que circundam o meio, a partir de conversas com autores, influenciadores e críticos experientes no mundo da escrita. Entre os bate-papos da data, um dos destaques foi o intitulado Manual para uma trilogia de ausências, que navegou pela trajetória de Aline Bei, escritora paulista, e o percurso dos seus três livros lançados até então: O Peso do Pássaro Morto, Pequena Coreografia do Adeus e Uma Delicada Coleção de Ausências. A mesa foi mediada pelo professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, Thiago Soares.

Foi a primeira vez de Aline na Bienal pernambucana, e a autora não escondeu a empolgação: “Eu tô muito feliz. Eu adoro Recife. Todas as vezes que eu fui, seja a passeio ou seja a trabalho, foram memoráveis. O Marcelino [Freire], meu professor, me levou no ano passado para dar uma oficina lá na Balada Literária, que é um evento que ele conduz”. Para ela, esse espaço para rever leitores e encontrar novos, conversar sobre as inquietações que conduziram suas obras, seu processo criativo e a forma do seu texto é muito singular — palavra que também pode ser usada para descrever seu estilo literário: uma linha tênue entre prosa e poesia. Um pouco de um, um pouco do outro e, ao mesmo tempo, uma forma particular, difícil de encaixar em um único gênero.

Seus livros seguem uma métrica muito espontânea, carregando uma narrativa completa traçada em versos, que vão se desenhando em estrofes muito distintas, características, cada uma seguindo seu próprio padrão. Aline não brinca apenas com a união das palavras, ela utiliza todos os artifícios possíveis da forma: se expressa pelo tamanho da fonte, pelo itálico e pelo negrito, pela pontuação, pelo espaçamento do texto, pela disposição de cada letrinha na página. O efeito disso são vocábulos que carregam um peso que vai além do significado. As palavras performam e querem ser vistas, provocam o ouvir e o olhar, não são simplesmente escritas, atuam. É quase como uma música: dá para sentir a essência, a entonação, a altura, a duração de cada uma das letras.

Trajetória

O comportamento das palavras que Aline escreve tem tudo a ver com a maneira como a escrita nasceu dentro dela, a partir da falta do teatro. A autora começou a traçar uma trajetória acadêmica cedo, entrando, primeiro, no curso de Artes Cênicas. Mais tarde, ela deixou o teatro e começou a cursar Letras na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, para se tornar professora de literatura. Foi aos 21 que começou a escrever, de maneira espontânea, sem esperar por nada: “A escrita surgiu como uma possibilidade criativa e até de existência, mesmo, como artista, sabe?”, diz ela, que sempre foi leitora, mas que se aproximou mesmo da escrita quando conheceu poetas na universidade. Para ela, eles são figuras muito próximas dos atores.

Antes de publicar seu primeiro livro, ela compartilhava o que escrevia na internet e seguia exercitando suas palavras. Foi em 2017 que O Peso do Pássaro Morto surgiu, dentro de uma oficina de Marcelino Freire. “Ele se tornou um grande mestre para mim. Na nova edição do Pássaro pela Companhia [das Letras] tem um posfácio dele contando um pouco da nossa história. Muito lindo, vale a pena ler. Pássaro ganhou um concurso dentro da oficina que proporcionava a publicação integral do livro sem custo nenhum, que é o prêmio Toca. E aí a gente publicou e começou a minha vida de autora publicada, né? Então, terminando a escrita do Pássaro, eu já comecei a desenvolver a escrita da Pequena Coreografia do Adeus”, conta Aline.

“Minha vida tem sido focada na escrita de uma maneira surpreendente e ao mesmo tempo natural. Eu não canso de viver esse paradoxo, esse espanto e ao mesmo tempo essa leveza para lidar com uma vocação que se apresentou para mim, num primeiro momento, de uma maneira inesperada”, afirma a autora. Ela se considera uma “escritora da fronteira”, nem poeta nata, nem prosadora nata. Percebeu isso ao longo dos anos, dando vazão para seu jeito de escrever, que, desde sempre, se apresentou como única possibilidade de expressão no papel. Ela sabe que é difícil classificar seu estilo em um gênero, e começou a se apropriar disso como uma vantagem, uma singularidade que está em constante trabalho e expansão.

Por Aline ter vindo do teatro, sua escrita tem um elemento visual muito importante, que se relaciona com a poesia concreta, mas também com sua própria história, sua pesquisa nas artes cênicas que não parou quando ela deixou de ser atriz, mas continuou com a palavra. Nas artes plásticas e no cinema ela também encontra material para enriquecer seus trabalhos. Todas essas coisas se infiltram no seu processo criativo e transformam sua escrita em algo particular. Ela conta que, no começo, as pessoas receberam seu primeiro livro com estranhamento, mas com consciência de que essa mistura era um elemento essencial para a narrativa, não uma subversão gratuita, e isso acabou interessando seus leitores. “Eu acho que o incômodo não é uma coisa ruim na arte, na verdade, eu acho ele um um algo desejado, inclusive porque uma arte que incomoda é porque ela propõe alguma mudança. Isso é muito interessante, né? Que ela faça isso. Se ela só for no prazer, eu acho que ela não constrói a pergunta que toda a arte precisa fazer [...] O incômodo existe, mas as pessoas continuam no texto e vão encontrando caminhos para elas. Então não foi um problema para o meu público. Eles conseguiram destrinchar e compreender a minha pesquisa muito rápido” explica.

Isadora Arruda
Aline Bei traz referências das artes cênicas, plásticas e do cinema em sua literatura - Isadora Arruda

Referências

Como uma pesquisadora, para escrever, Aline se debruça em referências. Há um repertório que está sempre segurando suas mãos, mas cada livro exige seu próprio caminho e seu próprio acervo de conhecimento e ideia de mundo, a levando para lugares específicos. Em Uma Delicada Coleção de Ausências, sua pesquisa foi mais direcionada para o cinema. Diferente dos dois livros anteriores, este é narrado em terceira pessoa, e os filmes a ajudaram a entender essa voz que observa e acompanha. Agnès Varda, cineasta por quem ela é apaixonada, foi muito importante para essa compreensão e para a imersão na visualidade das personagens da obra, que são mulheres mais velhas. “Eu não tinha esse repertório de mulheres mais velhas nuas. Eu nunca vi minhas avós nuas tomando banho. E eu precisava desse repertório porque é um livro sobre isso também. E a Agnès Varda me deu muita sensibilidade com cinema dela”. Aline também encontrou inspiração em Chantal Akerman e seu olhar para a rotina, para as coisas que se repetem. Para a escritora, seu cinema adentra uma profundidade que pode não ficar explícita à primeira vista, mas que se esconde no transe gerado pela repetição. Em Fellini, ela buscou destrinchar o circo, que também marca presença na obra, mas foi além: fez entrevistas, foi a espetáculos e leu muita teoria. Foram quatro anos de processo, então muitos horizontes foram se abrindo.

Também foi esse o intervalo de tempo que Aline passou trabalhando em Pequena Coreografia do Adeus, que carrega muito da dança. Pina Bausch, uma coreógrafa alemã que conquistou a autora, é uma grande referência, assim como o butô, uma forma de teatro de dança japonesa, que entra em contraponto com o balé, praticado pela protagonista do livro em uma fase da sua infância. Para dar honestidade aos diários escritos pela personagem, ela foi atrás de diários de artistas. Foi nesse processo que ela encontrou os de Louise Bourgeois, artista plástica que inspirou tanto a visualidade das páginas, do lado de dentro, quanto as ilustrações que estampam o exterior, a capa.

Ponto de partida

O trabalho de Aline não nasce a partir de ideias. São essas referências que se aglutinam nela e despertam inquietações que ela sabe no que podem se tornar. “O que me faz começar é um incômodo, uma impressão, uma intuição, um pressentimento. É uma coisa muito abstrata, mas eu sei que tem um livro lá, sabe? Então eu começo a desdobrar e puxar fios a partir justamente do meu encontro com outras obras. São essas obras que vão me dando uma espécie de aprendizado do que eu vou escrever, como se esse repertório fosse a ponte que eu tenho que percorrer para chegar aonde eu quero chegar no meu livro, que é uma revelação para mim. Quando eu termino a primeira versão, eu não fazia ideia do que eu ia construir”, explica ela. Depois que esse esboço inicial se revela, ela diz que é necessário trabalhar o caos das primeiras marcas do texto no espaço. É uma construção constante, e é por isso que os seus livros demoram a ficar prontos. Ela só os descobre realmente após a publicação, quando se reúne com seus leitores: “Até então é uma nebulosidade imensa [...] Por isso que eu não me desconecto, porque eu fico curiosa tanto quanto o leitor fica no seu aproximar-se do livro. Eu também estou me aproximando de alguma coisa que não parece exatamente feita por mim. Parece uma coisa que já existe, que eu tô encontrando, que eu tô trazendo para perto”.

Assim, com pontos finais que geram novos pontos de partida, a autora estabelece uma relação com sua escrita que perpassa por um olhar que é muito seu e, ao mesmo tempo, coletivo. O trabalho de Aline é cheio dessas pequenas contradições que de alguma forma fazem todo sentido e o tornam tão singular. Prosa e poesia, o eu e o outro, palavras que se movem e performam. Seu desdobramento é um transe que também funciona como uma antítese: dói, provoca, mas encosta em um lugar tão profundo que não dá para não se sentir abraçado.

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