Memória, luto e envelhecimento sob a ótica poética Clarice Freire
A autora participa da mesa Os leitores e as redes sociais nesta sexta-feira (3), abertura da XV Bienal Internacional do Livro de Pernambuco

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Começa nesta sexta-feira (3) a XV Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, evento que reúne leitores, autores e criadores de conteúdo em um espaço de promoção de debates, diálogos e conhecimento, não apenas sobre obras e escritores, mas sobre gêneros literários, identidades, mercado e tendências. Entre as mesas que abrem este primeiro dia de celebração literária, está a Os leitores e as redes sociais, que lança um bate-papo com a escritora e influenciadora Karou Dias e a autora Clarice Freire sob a mediação do jornalista e crítico Fábio Lucas.
A temática da discussão não poderia ter como porta-vozes autoras mais pertinentes: Karou Dias vive na prática a experiência de usar as plataformas digitais para conversar, criticar e fomentar o debate sobre suas paixões literárias; enquanto isso, Clarice Freire não só teve sua trajetória como autora permeada pelas redes sociais, como dedica toda uma tese de doutorado para pesquisar o assunto.
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“Não sei se foi por acaso que o tema conversa muito, na verdade, com a minha pesquisa do doutorado, que é a autoria do leitor nas redes sociais [...] O leitor tem tido um protagonismo de definir caminhos com muita força, como nunca aconteceu antes, né? Então, tem me interessado muito perceber esse surgimento, essa nova modalidade de crítica, digamos assim, que é, como eu tenho falado no meu doutorado, esse avanço, essa força e essa voz de autor, de leitores que se tornam autores. Quando eles criam conteúdos a respeito dos livros que eles gostam, eles não são leitores passivos, eles são leitores que se tornam autores de textos, de resenhas, de vídeos, de interpretações, de diálogos. Eles criam clubes de leitura, eles fomentam a leitura no país”, diz Clarice, que também destaca sua empolgação com a mesa e a possibilidade de dar ainda mais sustância ao debate desse fenômeno, que é evidente não só no contexto brasileiro, mas no mercado literário mundial.
A alternativa de, por meio das redes sociais e das plataformas digitais, dar à luz a conteúdos autorais e ter a chance de colocá-los no mundo de maneira mais independente não apenas atravessa o trabalho acadêmico de Clarice, como transpassa boa parte da sua trajetória como autora. Não foram esses meios que, necessariamente, a tornaram a autora que ela é, já que a escrita anda ao seu lado desde muito nova, como um legado familiar que, ao chegar até ela, tomou sua própria forma em convergência com suas necessidades e sentimentos. No entanto, foi o espaço digital que fez com que essa parte de si circulasse por aí.
Arte e poesia
Clarice descreve a escrita como uma necessidade. É essa a sua forma de se comunicar com o mundo, de “chover” seus pensamentos e descarregar sua nuvem, para assim andar leve, sem enlouquecer. Esse descarrego sempre esteve presente, desde a infância. Mais tarde, ela até tentou seguir por um outro caminho, parte de sua família já atuava no ramo. Só que a escrita nunca desapareceu, permanecia guardada, escondida, segurando as mãos de outra das paixões de Clarice: a ilustração.
“Para brincar com meu pai quando eu era criança, eu tava escrevendo, fazendo poesia. Meu pai também é escritor. E a minha mãe, embora seja assistente social, é uma grande ilustradora, ela desenha muito bem, ela é muito boa na aquarela, principalmente, ela desenha bem tudo. E aí eu brincava muito de desenhar com a minha mãe. Então, eu tenho uma teoria própria, que como eu tava o tempo todo brincando com a palavra e brincando com o desenho, o meu cérebro grudou as duas coisas, como se fosse uma coisa só. É um um processo muito natural enquanto eu escrevo desenhar [...] E aí quando eu comecei a fazer poesia, ela naturalmente foi uma poesia visual.”, explica a autora.
No trabalho, a Clarice adulta derramava sua chuva nas poesias durante os intervalos entre uma tarefa e outra. Um dia, jogou tudo no lixo. Foram seus colegas que, ao encontrarem seus poemas, a incentivaram a colocá-los na internet. Em 2013, nasceu seu blog, criado por esses amigos. Foi um susto para ela perceber que estava sendo lida, mas foi desse sobressalto que partiu a decisão de começar a investir mais na escrita, de estudar, de ter um cuidado maior com as coisas que iam parar na web. Tudo aconteceu muito rápido, as poesias viralizaram e ela recebeu um convite da Intrínseca para transformá-las em livros. O primeiro, publicado ainda em 2013, trouxe no nome o título do seu blog: Pó de Lua. O segundo também derivou dele, chamando-se Pó de Lua nas Noites em Claro, saindo em 2016. Seu terceiro livro, primeiro romance, foi publicado oito anos depois.
Tempo e prosa
Diferente dos livros anteriores, Para Não Acabar Tão Cedo é escrito em prosa, no entanto, a forma poética permanece sendo o fio condutor da linguagem literária de Clarice. Traços de poesia seguem presentes no romance, seja na escolha de palavras ou mesmo na métrica de alguns dos trechos. “Eu sou da poesia e acho que sempre serei. Acho que a palavra poética é a minha forma de falar. Eu não sei falar de outro jeito. É assim que eu falo na na escrita. Eu vejo que é através da poesia que eu mais consigo ser honesta. Acho que essa é a minha forma de me comunicar, literariamente falando. Então, eu não costumo dizer que eu venho da poesia, eu digo que eu sou da poesia, ainda que eu tenha escrito um romance”, justifica. A paixão pelo desenho também aparece aqui. A aquarela que ilustra a capa foi feita por ela, e esse seu lado também aparece em rabiscos de uma das personagens.
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Em Para Não Acabar Tão Cedo, duas irmãs, na fase da velhice, acordam repentinamente no corpo de sua juventude, embora o mundo continue o mesmo. O livro trata de memórias, luto, envelhecimento e relacionamentos com um delicadeza que demandou cuidado e tempo — Tempo, aliás, é uma palavra chave tanto dentro das páginas quanto fora, na vida de Clarice. Foram seis anos de escrita, entre idas e vindas, desistências e retornos. Para ela, esse processo de maturação foi necessário. Nesse intervalo de Tempo, a perda de pessoas mudou sua relação com a morte e a fez descobrir que o narrador dessa história seria o próprio Tempo, com T maiúsculo.
“A princípio não ia ser, quem contava a história era Augusta, a irmã mais velha. Só que não tava me emocionando. E aí quando eu descobri o Tempo como narrador, era como se fosse a peça que tava faltando para eu conseguir mergulhar de vez”, afirma a autora. Essa percepção também a ajudou a olhar para textos já escritos sob uma outra perspectiva. Muitos de seus contos e textos soltos desse período tinham tudo a ver com esse trabalho. Clarice uniu esses retalhos: “Era o livro nascendo em outras instâncias da minha vida e eu não sabia. Na hora que a gente senta para escrever, a gente descobre quase que um organismo vivo que pulsa ali na sua frente, para que você vá somente conduzindo os passos, como um filho”.
Clarice cita alguns exemplos: foi revisitando um conto que escreveu sobre o envelhecimento de uma mulher sob o ponto de vista do Tempo, que ela entendeu quem seria o narrador. Ainda, uma das cenas do livro foi retirada de um relato pessoal da autora, em que, num elevador de hospital, alguém segurou sua mão. “Eu também tinha escrito algumas coisas depois da morte do meu avô sobre a vida, sobre a uma infância que quase foi junto com ele e algumas frases, alguns trechos, algumas poesias durante esses períodos difíceis que acabaram entrando lá”, diz ela. Entender a maternidade também foi crucial para que o livro se tornasse o que se tornou. Durante a escrita, Clarice ainda não era mãe. Foi no processo de revisão da obra, realizado quando ela já estava começando a viver a experiência materna, que ela percebeu como poderia enriquecer a relação de uma das personagens com seu filho, torná-la mais verdadeira.
Trilhos
Para Não Acabar Tão Cedo tem pouco mais de um ano de lançado. Por enquanto, o foco da autora é e divulgá-lo, levá-lo a lugares, fazer com que ele trace seu caminho no mundo. Há inquietações sobre obras futuras, mas, por ora, Clarice “não faz a menor ideia” se vem romance ou poesia por aí. Com a maternidade e uma tese de doutorado para finalizar, o plano deve ser permanecer por um tempo cuidando deste livro. A Bienal é apenas uma das muitas estradas pelas quais ele pode percorrer.
Clarice não anda sozinha pelos trilhos da escrita. Com ela, caminham suas muitas referências, dentro e fora da literatura. Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Marcelino Freire e Wilson Freire são só algumas delas, dentro do campo da literatura. Na área, Manuel de Barros é um dos destaques: “Foi uma revolução quando eu vi as desimportâncias que ele escreve, quando ele disse que queria crescer para passarinho ou quando ele começa a falar da pedra, da rã, da lesma existindo na parede, ele fotografa a existência daquela lesma. E aquilo me encantou muito porque houve identificação, porque eu vi que na minha escrita eu gosto muito de fazer isso, de olhar para o que não tem importância, para o ordinário da vida. Tanto que também nesse romance é bastante no ordinário que o extraordinário acontece. Isso foi completamente proposital na minha escrita, porque é um pouco como eu vejo a vida mesmo, acontece agora, acontece no café da manhã, acontece antes de dormir, acontece no resto de domingo”.
Fora da literatura, ela encontra na “melancolia irônica e delicada” de Burton, na natureza de Monet, no piano de Amaro Freitas e na emoção de Milton Nascimento uma poesia que também alicerça seu trabalho. São muitos os que a guiam pelas ruas da arte. Daqui para a frente, é deixar o Tempo passar, presenteá-la com mais da magia do ordinário, maturar suas atuais e próximas ideias, soprar em seu ouvido. Nem mesmo ele conhece o futuro, como nós, também aguarda os próximos passos de Clarice.