Paulo Roberto Cannizzaro: O ataque as garantias constitucionais e a perda do humor nacional
Garantias legais não deixaram de existir, no entanto, refletem um sentimento de que o custo social e pessoal de se expressar publicamente é perigoso

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Meu pai foi cassado. Protagonista de confiança no governo de Juscelino. Exonerado do cargo de contador da Caixa Econômica Federal em Brasília. Ajudou a ocupar a nova capital das esperanças, na inauguração da cidade, em abril de 1960.
Em 1966 foi acusado, com alguns amigos fraternos, de ser um comunista. Nunca o foi. Cidadão exemplar, politizado, conhecedor sobre política do país, homem pacífico, sempre defensor de liberdades. Seu período de experiências, no governo, foi dolorido, carregou dor pessoal, discriminado por uma falsa acusação.
Vi suas mágoas, testemunhei lágrimas, pelas arbitrariedades de uma exoneração cheio de falhas. Seu melhor amigo foi retirado de casa por militares à paisana, num domingo. Minha tia nunca soube de seu paradeiro, foi engolido no sótão da ditadura.
Nunca prestaram contas de sua vida. Dias repletos de proibições. De tudo. Das possibilidades da cidadania. Era de contenção, do pensamento e das ações. Contra às liberdades de expressão, de imprensa, de reunião, de associação, de manifestação, tudo foram restrições ou até de eliminação sumária do regime.
Pensar, expressar-se, opinar, escrever, e até cantar, podia ser um ataque ou agressão.
Igualmente, em eventos da história, em todos os sítios, viu-se essa contenção de liberdades, de cerceamento das garantias, até de ataque do direito à ampla defesa, por vezes restringidas em ações, inclusive em Supremas Cortes, com indisfarçáveis ataques a Instituições.
Internamente, essa é uma luta de nossa carta constitucional, garantir intransigentemente a ampla defesa. O artigo 5, inciso 55, em taxativo comando, diz: “assegurado o contraditório e a ampla defesa”. A considerar, ademais, que ampla defesa, nunca é um favor. É garantia. É direito, essencial jurídico da democracia. Ressalto, mas não uma defesa rarefeita.
De defender-se, apenas trivialmente, em voz minimizada, restrita, formal, protocolar, burocrática. Não é o sentido. A norma orienta, com rigor, que seja amplíssima, por todas as possibilidades, insiste o figurino constitucional, “com todos os meios e recursos a ela inerente”. É a inspiração, liberdade como garantia permanente. Assim, a prisão é a exceção, não é a regra.
Em nosso cotidiano, o que se observa é uma banalização geral do mal-uso do Direito. Prisões preventivas, provisórias, medidas cautelares não razoáveis, inclusive ainda sem processo, a espera do desenrolar dos fatos, dos esclarecimentos, e do ajuntamento das provas. Desvios da lei, são fartos, ocorridos de forma recorrente.
A polícia lhe acorda às 6h da manhã, invadem a privacidade de sua casa, sem que se saiba exatamente por que está tendo que ser “convidado” a mostrar seus armários.
Quantas medidas dessas são extravagantes, e assustam, e destroem a imagem de pessoas, famílias e empresas, de forma invasiva ou arbitrária, para no final, descobrirem que não havia provas de presunção de crimes, ou que você não era parte processual.
A prisão temporária, em particular, tem um vício de origem, tem uso ampliado, mas ainda é considerada por especialistas como um "corpo estranho" no ordenamento jurídico.
Parece, ainda ausente, melhores balizas em relação ao direito de liberdade de expressão por parte de tribunais superiores, e são por esses tantos exageros é que a atuação do judiciário é questionável, sem linhas claramente demarcadas.
O que o cidadão comum, sem entender de leis e de direitos, percebe intuitivamente, é que perderam os freios e os limites do judiciário. Vivemos uma era social, política e judiciária confusa e feia. Adotamos a feição de uma nação chata e de contradições, há receios de se expressar, até de fazer o humor sobre nós mesmos.
O humor, em idos tempos, foi considerado um produto nacional. Brincávamos mais, descontraídos, leves, ríamos até de nossas próprias contradições e idiossincrasias, isso hoje não é viável.
Os antigos humoristas, agora talvez fossem presos, acusados de atentar à democracia, de tramarem um golpe de estado, e as piadas aos nossos patéticos governantes seriam ofensivas, haveria um repertório de ações de indenizações, danos morais.
Tudo agora é ataque, preconceito, ofensivo a psique do outro, gera reações e suscetibilidades, resultando em maior reatividade. Poucos estão confortáveis em opinar, em discordar, em divergir, nada é politicamente correto, tampouco ser contra, ou a favor, ataca a dignidade moral do outro, e o medo passou a permear a vida cotidiana, no meio de uma polarização política.
Tudo é tendente a levar questões de um discurso (incluindo humor) para a esfera judicial, com processos de difamação, injúria ou de crimes contra a honra, criando um "efeito inibidor" (chilling effect) para o que se pode ou não dizer publicamente.
Críticas resultam em "cancelamento" social, difamação, ou até ameaças, tanto no ambiente online quanto offline. O medo de ser mal interpretado, rotulado ou agredido por suas ideias também influenciam à autocensura.
As garantias legais não deixaram de existir, no entanto, refletem um sentimento de que o custo social e pessoal de se expressar publicamente agora é perigoso, influenciando menor debate público sobre temas importantes.
Especialistas afirmam que houve uma piora em certos aspectos do Direito, deterioração dos direitos e liberdades no país, constrangidos pela concentração de poder, restrições à liberdade de expressão, além de outros problemas que incluem a baixa posição do Brasil no ranking de estado de direito e violações contínuas de garantias.
A nação chegou a uma polarização tão sublime que, se um lado disser que o sol brilha, o outro imediatamente levanta uma tese de conspiração sobre aquecimento global, patrocinado por alienígenas de Marte.
E se o sol resolver criar um eclipse, ah, aí cada lado correrá para culpar o outro pela escuridão, alegando que é um plano maquiavélico para esconder a verdade.
E, afinal, como os ministros do STF vão interpretar tudo isso? Cenas do próximo capítulo, haverá a instalação de uma CPI antes, mas precisamos esperar a manifestação do Ministério Público, que pode achar que a lua também é culpada e participou da formação de uma quadrilha.
Paulo Roberto Cannizzaro, escritor.