Pernambuco expande tratamento de AVC no interior e enfrenta a tragédia silenciosa que desafia o tempo

Brasil registra mais de 400 mil casos e 100 mil mortes por AVC todos os anos; médicos destacam importância do socorro rápido e reabilitação precoce

Por Maria Clara Trajano Publicado em 16/10/2025 às 20:18

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FLORIANÓPOLIS - O tempo costuma ser invisível. Mas, diante de um acidente vascular cerebral (AVC), ele se torna um inimigo feroz. Cada minuto de espera pode custar milhões de neurônios — e com eles, movimentos, palavras e memórias.

Em Pernambuco, essa corrida contra o tempo vem ganhando novos capítulos. A rede estadual expandiu o tratamento emergencial do AVC para as cidades do interior, mas ainda há desafios para garantir que o socorro chegue a tempo e que o paciente receba reabilitação adequada.

Durante o 15º Congresso Brasileiro de Acidente Vascular Cerebral, realizado entre os dias 9 e 11 de outubro em Florianópolis, especialistas reforçaram o alerta: o AVC é a principal causa de morte e incapacidade no Brasil e, ao contrário do que muitos pensam, pode ser prevenido e tratado.

“O AVC não é uma doença rara, é uma tragédia”, afirmou a neurologista Maramelia Miranda durante o congresso, realizado em Florianópolis.

A fala ecoa no diagnóstico feito pela pernambucana Ana Dolores Nascimento, coordenadora da Unidade de AVC do Hospital da Restauração (HR), no Recife. Para ela, o cenário local está em transformação, mas a batalha ainda está longe de ser vencida.

Pernambuco amplia rede de atendimento

“A rede estadual melhorou consideravelmente nos últimos dois anos”, afirmou Ana Dolores, que esteve presente no 15º Congresso Brasileiro de Acidente Vascular Cerebral. Até outubro de 2023, o tratamento trombolítico (que dissolve o coágulo responsável pelo AVC isquêmico) era realizado apenas no Hospital da Restauração e no Pelópidas Silveira (HPS), ambos na capital.

“Hoje temos oficialmente cinco portas de entrada para trombólise venosa no Estado: Hospital da Restauração, Hospital Pelópidas Silveira, Hospital Mestre Vitalino, Hospital Regional de Palmares e Hospital Eduardo Campos, em Serra Talhada. E 87% das cidades pernambucanas estão a menos de 2h30 de uma emergência habilitada para o tratamento”, explicou.

O Estado também se prepara para ofertar de forma ampla a trombectomia mecânica, procedimento mais complexo que remove o coágulo por meio de cateter.

“O Hospital da Restauração já está habilitado pelo Ministério da Saúde, e os materiais foram solicitados. Em 2024 realizamos 12 trombectomias, ainda em caráter experimental, vinculadas a pesquisas clínicas”, disse.

Com a habilitação de novas unidades em cidades como Serra Talhada e Caruaru, Pernambuco busca reduzir desigualdades no acesso ao tratamento, ainda concentrado na Região Metropolitana.

Tempo é cérebro

Para a neurologista Simone Amorim, membro titular da Academia Brasileira de Neurologia (ABN), compreender o que ocorre no cérebro durante o AVC ajuda a dimensionar a urgência do atendimento.

Roberto Sallaberry
A neurologista Simone Amorim em palestra durante o evento - Roberto Sallaberry

“A cada minuto é estimado que se percam 2 milhões de neurônios e 14 bilhões de conexões cerebrais. Por isso, dizemos que tempo é cérebro. Um minuto sem socorro adequado significa milhões de células que deixam de existir”, explicou.

Segundo ela, 70% dos casos são do tipo isquêmico, quando há obstrução do fluxo sanguíneo no cérebro. O restante corresponde ao tipo hemorrágico, provocado pelo rompimento de um vaso. Em ambos os casos, o tratamento rápido é determinante para a sobrevivência e recuperação.

“Temos uma janela de até 4 horas e 30 minutos para a trombólise e até 24 horas para a trombectomia. Quanto mais rápido o paciente chegar a um hospital preparado, melhores são as chances de evitar sequelas graves”, destacou.

Como reconhecer um AVC: SAMU

Identificar precocemente os sinais é fundamental. Para isso, a sigla SAMU. ajuda na memorização:

  • S – Sorriso: o rosto fica torto ou assimétrico;
  • A – Abraço: um dos braços não levanta;
  • M – Música (ou fala): a pessoa tem dificuldade ao cantar, falar ou repete frases incoerentes;
  • U – Urgência: é preciso ligar imediatamente para o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU – 192) ou outro serviço de emergência em seu município.

“Teve sintoma de AVC, corre para o hospital. Não espere passar, não vá dormir achando que melhora. É igual infarto: quanto mais rápido o socorro, maior a chance de sobrevida”, reforçou Maramelia.

Reabilitação precoce

O fisiatra Celso Villela destacou que o maior gargalo do tratamento hoje está no pós-AVC. “Depois que o paciente sai da unidade de AVC, para onde ele vai? Quanto mais rápido começar a reabilitação, mais funcional e com menos sequelas ele fica”, afirmou.

Villela explicou que o ideal é que a alta hospitalar já venha com o encaminhamento agendado para um centro de reabilitação. “O paciente não pode ficar perdido no sistema. Cada mês sem iniciar o processo significa perda funcional. Na reabilitação, tempo é função”, ressaltou.

Entre as sequelas mais comuns está a espasticidade, caracterizada pela rigidez muscular que limita movimentos e causa dor. “Quanto mais tempo o músculo fica rígido, menor a chance de reabilitação. Intervir cedo é fundamental para evitar deformidades e perda de qualidade de vida”, alertou o especialista.

No Hospital da Restauração, todos os pacientes com alta são encaminhados para fisioterapia e fonoaudiologia, mas a demanda supera a capacidade.

“O ambulatório de reabilitação do HR não consegue atender todos os pacientes, porque muitos permanecem meses, até anos, em terapia. Isso torna o giro de vagas mais lento que o número de novos casos diários”, explicou Ana Dolores.

Para contornar o problema, o Estado vem expandindo o atendimento para UPAEs e clínicas-escola de universidades, além de estimular o acompanhamento próximo ao domicílio. “O ideal é que a reabilitação ocorra perto da casa do paciente, para evitar deslocamentos e facilitar a rotina dos cuidadores”, disse.

Outro obstáculo é a escassez de fisiatras — médicos especializados em reabilitação. “Em Pernambuco, apenas sete profissionais possuem registro nessa especialidade. É um número muito pequeno para a demanda que temos”, alertou Ana Dolores.

Educação e prevenção

Apesar do impacto, o AVC é em grande parte prevenível. “A gente sabe o que causa o aumento da incidência: hipertensão, diabetes, obesidade, tabagismo e sedentarismo. O movimento é essencial para a saúde cerebral”, enfatizou Simone Amorim.

Segundo a médica, controlar a pressão arterial, manter alimentação equilibrada, praticar atividade física e não fumar são atitudes que reduzem drasticamente o risco. “Um em cada quatro pessoas terá um AVC em algum momento da vida. É um número real, não é praga; é estatística. Então, é preciso agir antes”, afirmou.

O esforço também passa pela conscientização. Na 3ª Macrorregião de Saúde de Pernambuco, no Serão do Pajeú, um projeto em parceria com a iniciativa privada capacitou professores de escolas municipais para ensinar crianças a reconhecer os sinais do AVC com a metodologia SAMU.

“A ideia é que os alunos aprendam e multipliquem esse conhecimento em casa, especialmente com os avós, que são o grupo mais vulnerável”, contou Ana Dolores.

Outras ações estão em andamento em Caruaru, Palmares e Serra Talhada, além da capacitação de profissionais de postos de saúde, UPAs e do próprio serviço de atendimento móvel de urgência (SAMU) metropolitano e do Agreste.

“Cada profissional treinado é um multiplicador de informações. E a imprensa tem um papel fundamental ao divulgar como reconhecer e agir diante de um AVC”, reforçou.

Uma rede que salva vidas

A neurologista Maramelia Miranda ressaltou que a estrutura de atendimento ainda é desigual no País. “Há cidades como Joinville e Florianópolis que são exemplos de cuidado, mas em muitas regiões o tratamento ainda é limitado ao horário comercial. Isso é inaceitável”, criticou.

Ela defende a expansão das unidades de AVC, que organizam fluxos de atendimento e aumentam as chances de recuperação. “AVC é fluxo. Desde o reconhecimento até a reabilitação, tudo precisa estar integrado.”

Viver depois do AVC

O tratamento, entretanto, não termina no hospital. Como lembrou Celso Villela, o paciente precisa ser acompanhado por uma equipe multidisciplinar: fisiatra, neurologista, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional e educador físico.

“O AVC não imuniza contra outro AVC. Ele pode acontecer duas, três, quatro vezes se não houver prevenção. Por isso, o cuidado é para a vida toda”, afirmou.

Reabilitar, portanto, é devolver à pessoa a possibilidade de viver, ainda que de outro modo. “Nem sempre conseguimos eliminar a sequela, mas criamos estratégias para que o paciente volte a fazer o que fazia antes, de forma adaptada”, concluiu Villela.

*A repórter viajou a convite da Ipsen Farmacêutica

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