Sanitarista reflete sobre saúde pública no Grande Recife: "Toda atividade econômica deve vir com infraestrutura"
Entrevista exclusiva com o médico sanitarista Dr. Thiago Feitosa de Oliveira, no videocast Giro Metropolitano deste sábado, sobre saúde pública

Clique aqui e escute a matéria
O Giro Metropolitano busca pensar os desafios e oportunidades da Região Metropolitana do Recife (RMR). Neste episódio, o videocast abordou a saúde pública com Thiago Feitosa de Oliveira, médico sanitarista, professor do Centro de Ciências Médicas da UFPE.
O programa, com apresentação de Natalia Ribeiro e que também é exibido na Rádio Jornal, recebe prefeitos e autoridades, mas também precisa ouvir a população.
Dr. Thiago, uma das demandas recorrentes é o esgotamento sanitário e a falta de água. Além de cumprir o marco regulatório, a saúde precisa ser levada em consideração ao falar desse problema de saneamento básico. Qual o impacto disso na saúde da população da RMR?
É importante contextualizar que o saneamento básico – que engloba o abastecimento de água e a destinação e tratamento do esgoto – tem avançado muito lentamente em todo o Brasil. O Nordeste, em particular, é uma das regiões do país com menor índice de esgotamento sanitário.
A Região Metropolitana do Recife, especificamente, tem dois municípios, Jaboatão dos Guararapes e Paulista, que figuram entre os 20 piores do Brasil em saneamento, principalmente em esgotamento sanitário, com menos da metade das pessoas tendo acesso à coleta de esgoto público.
Em Jaboatão, 20% da população ainda não tem fornecimento de água. No Recife, 45% da população não tem esgotamento sanitário, embora a cidade avance no abastecimento de água potável (cerca de 95% das pessoas têm acesso), mesmo que de forma intermitente, como o rodízio, que afeta muito os morros.
Essa situação de acúmulo de água nas casas, por exemplo, provoca a proliferação do mosquito Aedes aegypti, causador das arboviroses. A falta de saneamento contribui para a superlotação da rede de saúde, gerando um rol imenso de doenças, como as diarreias (muito comuns na infância e com riscos para idosos), leptospirose, hepatite A, dermatites e conjuntivite.
Além disso, afeta a qualidade de vida, causando prejuízos no sono devido a muriçocas e mau cheiro. O saneamento básico adequado, com fornecimento de água potável e coleta de esgoto, é fundamental para prevenir doenças, reduzir a mortalidade infantil e melhorar a qualidade de vida da população.
Em Ipojuca, a questão econômica e financeira fo turismo é crucial, mas o saneamento básico de também está em situação precária. Ou seja, o turismo e o saneamento não conversam. Isso também é preocupante, certo?
Preocupa muito. Toda atividade econômica deve vir acompanhada da infraestrutura necessária para acontecer de forma segura. Vimos recentemente episódios de doenças transmitidas em banhos de mar ou rios próximos a áreas de grande movimentação turística.
Tudo que é consumido e gera lixo ou resíduo a partir da atividade econômica precisa ter uma destinação adequada para não prejudicar as pessoas que residem no entorno.
O avanço da construção civil, com a concentração de prédios em certas áreas, como no Recife, também sobrecarrega todo o sistema de coleta de esgoto.
Cada prédio novo, restaurante ou atividade industrial/comercial deve ter a destinação correta do esgoto e do lixo. Se não for assim, esses resíduos vão para locais inadequados e afetam diretamente a população próxima ou que consome alimentos ou água que podem estar contaminados.
Quando esse material inadequado é despejado no mar, qual é o risco direto para o ser humano?
As consequências imediatas são as infecções de pele, conjuntivite e diarreias, que podem ser adquiridas no banho de mar próximo a uma área com grande quantidade de esgoto.
Também pode haver contato com minerais ou rejeitos industriais em áreas próximas a indústrias e portos, que comercializam produtos potencialmente tóxicos.
É crucial que toda atividade econômica venha acompanhada da infraestrutura necessária para não trazer riscos às pessoas que utilizam o ambiente próximo. Como já dissemos, essas pessoas acabam procurando a rede de saúde, geralmente a pública.
A RMR possui muitos hospitais e unidades de atendimento vinculadas à rede estadual, mas também municipalizadas. O senhor vê essa estrutura bem servida?
O Sistema Único de Saúde (SUS), que é o Sistema Nacional de Saúde no Brasil, é gerenciado pelos três níveis de governo: município, estado e União. No entanto, em Pernambuco, temos uma realidade um pouco diferente da Constituição Federal, com um setor de saúde muito estadualizado, possuindo grandes estruturas estaduais hospitalares e ambulatoriais.
O grande problema que vivenciamos, e que se intensifica na região metropolitana, é uma certa desintegração de um sistema que deveria ser único.
Muitas vezes, a quantidade de serviços não corresponde à resolutividade dos problemas das pessoas, justamente porque o sistema não está integrado.
Cada ponto de atenção – UPA, ambulatório, policlínica, unidade básica, unidade de saúde da família, hospital – tem seu papel, e isso precisa ser gerenciado de forma integrada. Aqui na RMR, temos um predomínio de Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e grandes hospitais.
Contudo, a grande maioria das doenças que temos hoje são crônicas, como hipertensão, diabetes, problemas respiratórios e intestinais crônicos. Essas doenças não são resolvidas em UPAs. Elas são resolvidas em serviços ambulatoriais, seja na unidade de saúde da família ou em unidades especializadas.
A falta de coordenação do cuidado, que deveria ser municipal e estadual, faz com que as pessoas procurem os serviços de forma desordenada.
Por exemplo, a hipertensão não se resolve na UPA. Se uma pessoa chega com pico hipertensivo, receberá um remédio, mas o problema voltará em poucas horas. Para resolver, é preciso uma unidade perto de casa que trate a hipertensão e, se for complicada, uma unidade especializada com fluxo organizado.
As pessoas muitas vezes vão direto às UPAs porque conseguem acesso com mais facilidade, mas esse tratamento inadequado pode até piorar o problema.
O que falta na região metropolitana é uma coordenação do SUS, de responsabilidade do governo do estado, que una os municípios, potencializando o que cada um tem a oferecer e definindo os fluxos, inclusive para as unidades estaduais.
Isso permitiria maior resolução no âmbito municipal e um uso mais preciso da rede estadual, resolvendo a superlotação. Além disso, os traumas, acidentes e violências são grandes motivos de superlotação dos hospitais estaduais.
O grande problema que vivenciamos, e que se intensifica na região metropolitana, é uma certa desintegração de um sistema que deveria ser únicoDr. Thiago Feitosa
Os acidentes de moto, por exemplo, pioraram muito na RMR com os deliveries, aplicativos e o Uber Moto, sobrecarregando os serviços de saúde. É preciso que essa geração de renda seja feita de forma segura, pois estatísticas mostram que o acidente de moto é sempre mais letal para o passageiro.
Somando a essa desintegração nas doenças crônicas e a sobrecarga nos acidentes, temos a permanência das doenças infecciosas e transmissíveis ligadas ao saneamento.
Os prefeitos falam muito sobre a questão dos limites territoriais na saúde. O usuário quer resolver o problema e busca a unidade mais próxima, que nem sempre está em seu município de residência...
Na saúde, a melhor forma de organizar é focar na Atenção Básica em Saúde. 80% dos problemas de saúde podem ser resolvidos próximo de casa, com equipes de saúde da família que acompanham um número limitado de pessoas (idealmente 3.000) durante a vida.
O desafio é que muitos municípios têm equipes cobrindo 6.000 ou 10.000 pessoas, o que impede uma assistência adequada. Cada município tem a obrigação e responsabilidade de montar e cobrir toda a cidade com sua atenção básica, sendo a Estratégia de Saúde da Família a melhor forma de fazer isso.
Além de atender aos problemas, essas equipes devem promover saúde e fornecer informações e educação. É fundamental lembrar que saúde também é responsabilidade familiar e individual, envolvendo alimentação saudável, atividade física e sono adequado.
>> Conheça o videocast Saúde e Bem-Estar
Infelizmente, a educação e informação têm deixado a desejar, com poucas campanhas de incentivo a hábitos saudáveis ou de vacinação em veículos como a imprensa, rádio ou redes sociais.
Quando o município cumpre seu dever de casa na atenção básica, o restante fica menos complicado. Assim, é possível delimitar os casos que precisarão de serviços especializados, internações ou atendimentos de urgência.
Os municípios de maior porte, como Recife, Jaboatão, Olinda e Paulista, devem ter maior resolução dentro de seus limites territoriais nas áreas especializadas, como cardiologia, oftalmologia e nefrologia, em decorrência das doenças crônicas mais prevalentes. É possível contratar esses médicos especialistas com um plano de cargos e salários adequado e boas condições de trabalho.
Na assistência hospitalar, é necessária uma grande integração entre os municípios e a rede estadual. Temos uma rede estadual muito grande e com hospitais de grande porte, mas o fluxo precisa ser melhor combinado e regulado pelo estado com os municípios.
Isso significa ter consultas com hora marcada, encaminhamento de pacientes para internação programada, utilizando a tecnologia para agendamentos. Isso já é feito em outros lugares do Brasil, como na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Campinas, São Paulo e até mesmo em João Pessoa e Fortaleza, que conseguiram organizar a saúde melhor que nós.
O Conecta Recife está dando conta dessas necessidades de agilizar atendimento e integrar as informações da população?
Na saúde, se tivermos equipes de saúde da família e agentes comunitários de saúde, o contato direto com as pessoas na comunidade é muito mais efetivo do que qualquer aplicativo.
As informações de saúde e as campanhas precisam ser veiculadas nas redes sociais, no WhatsApp, onde as pessoas estão, explicando como chegar aos serviços.
O Conecta Recife é mais uma ferramenta, mas não pode ser a estratégia principal. Recife, por exemplo, é campeão de sífilis congênita e campeão de mortalidade materna, o que indica uma série de indicadores muito ruins na nossa cidade e região metropolitana.
A estratégia principal é estar próximo das pessoas onde elas vivem, ter obras estruturadoras na área de saneamento e disponibilizar informações para uma vida saudável.
Além disso, é crucial viabilizar, por meio de fluxos bem estabelecidos e organizados, o acesso aos serviços no momento correto. A região ainda tem falta de serviços especializados e, mesmo onde a atenção básica existe, há problemas no acesso a exames complementares.
Por exemplo, resultados de hemogramas podem demorar 3 meses, e exames de pré-natal podem chegar depois que a mulher já teve o bebê.
A medicina hoje exige recursos complementares à consulta, como exames laboratoriais e de imagem em quantidade e tempo adequados.
Não adianta apenas aumentar o número de equipes, médicos e enfermeiros se as condições de atendimento são as mesmas, sem para onde encaminhar os casos graves ou acesso rápido a especialistas. Se não resolvemos a assistência ambulatorial, tudo esbarra na superlotação dos grandes hospitais.
O grande problema que vivenciamos, e que se intensifica na região metropolitana, é uma certa desintegração de um sistema que deveria ser único
Dr. Thiago Feitosa