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Tarifa Zero: Apesar do apelo social, implantação da Tarifa Zero nas grandes cidades enfrenta obstáculos e cenário complexo

Estudo da NTU alerta sobre a necessidade de um bom planejamento para que a Tarifa Zero seja um programa de Estado e, não, oportunismo político

Por Roberta Soares Publicado em 21/09/2025 às 8:00

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Apesar do apelo social, a implantação da Tarifa Zero nas grandes cidades brasileiras enfrenta obstáculos e cenários complexos que exigem contas e, principalmente, decisão política. Esse, inclusive, é o maior obstáculo porque condiciona o programa à vontade de prefeitos e governadores - no caso dos sistemas metropolitanos, como o do Grande Recife, por exemplo. E o brasileiro sabe: tudo que depende da vontade de políticos, é incerto e condicionado às estratégias convenientes do momento.

O alerta sobre essas dificuldades e a necessidade de um bom planejamento para que a Tarifa Zero seja encarada como um programa de Estado e, não, oportunismo político, foi feito pela Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) na atualização de um estudo nacional sobre a adoção da gratuidade nos municípios brasileiros, movimento que ganhou força a partir de 2021, após as grandes perdas de demanda de passageiros provocada pela pandemia de convid-19.

O estudo de 2025, focado nas 12 cidades com mais de 100 mil habitantes que adotaram a Tarifa Zero universal (para toda a população e em todos os dias), aponta para um cenário complexo, especialmente para grandes centros e metrópoles. Uma das principais conclusões é a ausência de dados básicos para o monitoramento do comportamento da oferta e demanda do transporte coletivo nessas localidades, indicando a carência de melhores mecanismos de controle e aprimoramento.

Ou seja, a gratuidade é dada, mas a qualidade do serviço - oferta de frota e conforto - não é mantida e termina por comprometer ainda mais a imagem dos sistemas de transporte. O levantamento da NTU, uma atualização da pesquisa iniciada em 2024, revela que, até maio de 2025, um total de 154 cidades brasileiras haviam implementado a Tarifa Zero, seja de forma universal ou parcial.

Notavelmente, 73% desses programas foram iniciados há menos de cinco anos, com 113 casos concentrados entre 2021 e maio de 2025. Essa expansão coincide com o aumento do subsídio público ao transporte coletivo no período pós-pandemia de covid-19, que buscou garantir a oferta de transporte sem comprometer as regras de distanciamento sanitárias.

A pesquisa detalhou a abrangência da Tarifa Zero no Brasil:

Tarifa Zero universal: Presente em 127 cidades, cobrindo a totalidade do sistema, todas as linhas e classes de usuários, durante todos os dias da semana.

Tarifa Zero parcial por dias específicos: Adotada em 17 cidades, abrangendo todo o sistema apenas em fins de semana e, em alguns casos, feriados.

Tarifa Zero parcial por abrangência geográfica: Encontrada em 10 cidades, aplicada a partes do sistema, geralmente em localidades periféricas com baixos índices de desenvolvimento econômico e social.

MUNICÍPIOS MENORES TÊM MAIS FACILIDADE EM ADOTAR A TARIFA ZERO UNIVERSAL. DESAFIO É MAIOR NAS GRANDES CIDADES

Filipe Jordão/Arquivo JC Imagem
Em termos demográficos, o estudo apontou que há uma clara concentração da Tarifa Zero em pequenas cidades, com até 50 mil habitantes, representando 62% (95 casos) do total - Filipe Jordão/Arquivo JC Imagem

Em termos demográficos, o estudo apontou que há uma clara concentração da Tarifa Zero em pequenas cidades, com até 50 mil habitantes, representando 62% (95 casos) do total. Ao todo, 79% (121) das cidades com Tarifa Zero possuem até 100 mil habitantes. Apenas 12 cidades com mais de 100 mil habitantes possuem Tarifa Zero universal. Geograficamente, a região Sudeste concentra 66% (102) dos municípios com Tarifa Zero, seguida pela região Sul com 22% (34 casos).

A situação é bem diferente nas grandes cidades. O estudo da NTU dedicou atenção especial aos 12 municípios com mais de 100 mil habitantes que implementaram a Tarifa Zero universal, todas a partir de 2021. Caucaia-CE é a maior delas, com aproximadamente 360 mil habitantes. Contudo, essas 12 cidades juntas reúnem menos de dois milhões de habitantes, uma quantidade inferior à população de grandes metrópoles como Fortaleza, Rio de Janeiro ou São Paulo.

Os dados revelam que menos de 4% das cidades com mais de 100 mil habitantes atendidas por sistemas de transporte público organizado por ônibus adotaram a Tarifa Zero universal. A frota total dessas 12 cidades soma 424 ônibus, um número similar ao de uma cidade de porte médio como Joinville (SC) e muito aquém das grandes metrópoles brasileiras.

“Em cidades com população superior a um milhão de habitantes e com uma frota de centenas de ônibus, o comprometimento do orçamento público pode chegar a 5% ou mais. A cidade de São Paulo, por exemplo,com uma população de 12,5 milhões de habitantes e uma frota operacional de quase 12 mil veículos, poderá comprometer de 15 a 20% do orçamento municipal, se não houver recursos provenientes de receitas extraordinárias ou com origem em novas fontes de custeio”, alerta o CEO da NTU, Francisco Christovam.

Na Região Metropolitana do Recife, assim como em todo o Estado, não há nenhuma previsão de qualquer tipo de Tarifa Zero. Pelo menos por enquanto.

ESTUDO CONSTATA UMA DESACELERAÇÃO NA ADOÇÃO DA TARIFA ZERO

BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM
Apenas 12 cidades com mais de 100 mil habitantes possuem Tarifa Zero universal (para toda a população e todos os dias) - BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM

Após um crescimento inicial elevado na demanda e oferta logo após a implantação da Tarifa Zero, a pesquisa indica uma redução na intensidade de evolução desses indicadores. Em casos como Caucaia-CE e Assis-SP, houve diminuição da oferta (redução de 23% e 50% na frota, respectivamente) para conter o aumento de custos e manter o serviço gratuito.

Também de acordo com a NTU, o programa Expresso do Trabalhador em São Luís, por exemplo, foi suspenso devido ao aumento de passageiros e à incapacidade da administração de arcar com os custos. Essa tendência sugere que a capacidade orçamentária dos municípios em prover mais oferta pode ter atingido seu limite - indica o estudo.

Embora alguns resultados positivos tenham sido verificados, como o aumento de faturamento no comércio e serviços em Caucaia-CE (25%) e Luziânia-GO (33%), e economia de 20% na renda familiar em Maricá-RJ, a NTU ressalta que o monitoramento e a divulgação dos impactos da Tarifa Zero carecem de melhorias. Em contraste, em Assis-SP, uma pesquisa revelou que 75% dos usuários estão insatisfeitos com o serviço, e 80% relataram que a oferta não atende às necessidades de deslocamento.

Em relação aos custos e financiamento, há uma grande variabilidade nos custos anuais (de R$ 4,3 milhões em Formosa-GO a R$ 87,3 milhões em Maricá-RJ), com as fontes de custeio variando entre orçamento municipal, fundos específicos e emendas parlamentares. A maioria das operações (8 das 12 cidades) é realizada por operadoras privadas, com apenas duas por empresas públicas.

CAPITAIS E A NECESSIDADE URGENTE DE MAIS ESTUDOS E PLANEJAMENTO

FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM
O alerta sobre essas dificuldades e a necessidade de um bom planejamento para que a Tarifa Zero seja encarada como um programa de Estado e, não, oportunismo político, foi feito pela NTU - FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM

Atualmente, nove capitais brasileiras possuem iniciativas de Tarifa Zero, mas todas de forma parcial. Essas iniciativas são recentes, implementadas a partir de 2021, e geralmente abrangem dias específicos - como domingos e feriados em Brasília (DF), São Paulo (SP), Belém (PA), Palmas (TO), Maceió (AL) e Cuiabá (MT) - ou grupos específicos de usuários (como o programa para desempregados em Curitiba (PR) ou 12 linhas em comunidades de Belo Horizonte (MG).

“A adoção da Tarifa Zero é uma política pública, inclusiva e de caráter social, que promove a organização do espaço urbano e a racionalização do uso do sistema viário, principalmente, pelo aumento do uso do transporte coletivo. Mas ela não garante a prestação de um serviço de qualidade à população. Quando o aumento da oferta de lugares não acompanha o inevitável crescimento da demanda, verifica-se uma superlotação dos veículos e uma perda significativa do nível do serviço. Por isso a importância de fontes externas e a garantia do financiamento do programa, que precisa ter bases sólidas para ser proposto. Não pode ser por puro modismo”, reforça Francisco Christovam.

No estudo, a NTU enfatiza que a expansão da Tarifa Zero nas capitais e grandes cidades é um desafio considerável. “A complexidade das redes de transporte, os elevados custos e a necessidade de financiamento sustentável para a mobilidade urbana coletiva tornam a universalização da Tarifa Zero inviável nesses contextos”, destaca o CEO da NTU.

BELO HORIZONTE CAMINHA PARA SER A PRIMEIRA CAPITAL BRASILEIRA A ADOTAR A TARIFA ZERO UNIVERSAL

Robson Cesco/Divulgação NTU
Francisco Christovam, CEO da NTU - Robson Cesco/Divulgação NTU

Apesar da consolidada análise da NTU sobre os desafios da adoção da gratuidade no transporte público nas grandes cidades, a capital mineira Belo Horizonte caminha para ser a primeira capital brasileira a adotar a Tarifa Zero de forma universal (todos os dias e para toda a população). A Câmara Municipal de BH está prestes a votar em plenário o Projeto de Lei da Tarifa Zero (PL 60/2025), que propõe tornar o transporte coletivo 100% gratuito para toda a população, todos os dias do ano.

Se aprovado, Belo Horizonte vai provar que é possível, sim, cidades brasileiras com mais de meio milhão de habitantes, instituírem a Tarifa Zero permanente no transporte público. Mas, como alertado no estudo da NTU, a estratégia adotada na capital mineira prevê a criação de um fundo bancado pela substituição do custo dos empregadores com o Vale Transporte por uma taxa social.

O Projeto de Lei 60/2025 institui o Programa Municipal de Incentivo ao Uso do Transporte Público Coletivo por Ônibus, com o objetivo de promover a escolha ativa da população pelo transporte público em detrimento de transportes individuais que aumentam a produção de Gases de Efeito Estufa (GEE).

O programa prevê a gratuidade do transporte público no momento de sua utilização, sem distinção de linhas, horários ou segmento social. O projeto também visa a melhoria dos veículos, com redução progressiva de emissão de GEE, o aumento do horário de circulação e das viagens, além da ampliação da integração física e tarifária com outros modos de transporte.

O PL da Tarifa Zero propõe um modelo de financiamento inovador, inspirado no sistema francês de 1971, que é referência mundial. O projeto institui a Taxa do Transporte Público (TTP), uma contribuição tributária para empresas com dez ou mais funcionários, com um valor médio de R$ 185 mensais por empregado. Empresas com até nove colaboradores seriam isentas, e a TTP substituiria o vale-transporte, que, por lei federal, se torna zero quando a tarifa é zero.

CONFIRA o estudo da NTU na íntegra:

Tarifa Zero_NTU_2025 by Roberta Soares

Os recursos da TTP seriam destinados a um Fundo Municipal de Melhoria da Qualidade e Subsídio ao Transporte Coletivo (FSTC), com maior transparência na gestão. Uma simulação realizada em BH projeta uma arrecadação de R$ 2 bilhões por ano com a taxa, valor que supera a receita atual em R$ 300 milhões.

“A prefeitura, por sua vez, deixaria de arcar com os R$ 698 milhões de subsídio. Um estudo da UFMG indica que o impacto médio na folha salarial das empresas seria de menos de 1%, e mais de 80% das empresas do município seriam beneficiadas com a redução de custos, por serem microempresas isentas”, explica Roberto Andrés, urbanista e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e uma das lideranças do Tarifa Zero.

Nesse novo modelo, as empresas de ônibus seriam remuneradas por quilômetro rodado, não por passagem vendida. Roberto Andrés explica que essa mudança eliminaria o incentivo para restringir horários ou reduzir linhas, estimulando a ampliação da oferta, "sobretudo à noite, o que dinamiza o comércio e a vida noturna".

Atualmente, o sistema de transporte de Belo Horizonte enfrenta uma crise. A tarifa de ônibus, hoje em R$ 5,75, é a terceira maior entre as capitais brasileiras e financia apenas 26% do custo total do sistema. A Prefeitura de BH já subsidia o serviço com aproximadamente R$ 700 milhões anualmente, sendo este o terceiro maior gasto do município e um valor que cresce sob pressão das concessionárias. Entre 2011 e 2023, BH perdeu 42% dos usuários de ônibus, contribuindo para a crise. O vale-transporte corresponde a 32% da receita atual e o passe livre estudantil a 1%.

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