Caso Alícia: o direito de dizer "não" violado desde a infância e o combate ao machismo dentro das escolas
O MPPE abriu procedimento administrativo para acompanhar a investigação, que foi retificada para lesão corporal seguida de morte

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O direito de dizer “não” tem sido sistematicamente violado desde a infância — sobretudo quando se trata dos desejos e vontades de meninas e mulheres.
A morte de Alícia Valentina Lima dos Santos Silva, de apenas 11 anos, que foi enterrada na tarde desta terça-feira (9), no Cemitério Público Municipal Recanto da Saudade, em Belém do São Francisco, no Sertão de Pernambuco, evidencia a urgência do enfrentamento à violência de gênero, conforme apontam os relatos registrados no Boletim de Ocorrência (B.O) por uma tia da vítima.
Segundo informações repassadas por um estudante, Alícia teria se recusado a "ficar" com um adolescente. As agressões teriam começado no banheiro da Escola Municipal Tia Zita, e quatro meninos e uma menina estariam envolvidos no caso. Os nomes dos suspeitos não foram divulgados, em conformidade com o que estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
O Ministério Público de Pernambuco (MPPE) instaurou um procedimento administrativo para acompanhar o andamento da investigação, que foi retificada para lesão corporal seguida de morte e está sob responsabilidade da Polícia Civil de Pernambuco (PCPE).
Embora os motivos não tenham sido confirmados oficialmente, ao trazer a morte de Alícia Valentina para o debate sobre a violência nas escolas, é fundamental compreender que os diferentes tipos de agressão fazem parte de um fenômeno complexo e multifacetado.
A violência escolar não se resume ao bullying — embora este seja uma porta de entrada significativa e, recentemente, tenha sido tipificado no Código Penal como crime —, mas envolve também outras formas de opressão, como o racismo, a homofobia e o machismo.
Fazer o debate a partir do bullying não significa necessariamente caracterizar esse crime dessa forma, mas sim apontar para o fato de que atos de violência marcados por uma relação desigual de poder — em que, com frequência, alguém se vale de um privilégio social para agredir quem está em situação de vulnerabilidade — não podem ser minimizados.
Esses comportamentos, quando não reconhecidos e interrompidos a tempo, tendem a evoluir para formas mais graves de violência — e nesse ponto entram os discursos de ódio e a misoginia, que atingem crianças e adolescentes cada vez mais cedo.
A recusa de Alícia Valentina diante de uma situação que envolvia sua integridade e vontade escancara a urgência de repensar como crianças e adolescentes estão sendo educados — especialmente no que diz respeito ao respeito à autonomia do outro, aos limites e ao consentimento.
É preciso que a escola, a família e a sociedade reconheçam que o "não" também é um direito — inclusive, e principalmente, das meninas. Esse é um desafio que exige responsabilidade coletiva.
Reflexo social no comportamento dos jovens
Para Mayara Pérola, psicóloga, pesquisadora e mestra em Educação, Culturas e Identidades (UFRPE), os episódios de violência envolvendo crianças e adolescentes, de maneira tão recorrentes, refletem um fracasso coletivo da sociedade.
“Enquanto psicóloga e mulher negra, sinto uma dor muito grande. Acho que fracassamos como sociedade. Existe um machismo estrutural que se reproduz na dinâmica de relacionamento entre crianças e adolescentes”, afirma.
O “não” de uma menina precisa ser compreendido e respeitado desde cedo, algo que, muitas vezes, não ocorre. “Ele é o mesmo não da mulher adulta que não é escutado nem reconhecido como desejo próprio. Isso é perigoso, porque reforça a misoginia — o ódio e o desprezo contra meninas e mulheres”, explicou em entrevista à coluna Enem e Educação.
A especialista também ressalta que o recorte racial não pode ser ignorado. “As meninas negras enfrentam situações de racismo desde muito pequenas. Quando chegam à pré-adolescência, isso se soma à objetificação e às desigualdades de gênero, tornando-as ainda mais vulneráveis", afirmou. Ela destaca que essa realidade é confirmada pelos dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2024), que apontam que 63,6% das vítimas de feminicídio no Brasil são mulheres negras.
O relatório também revela um aumento preocupante de 30,7% nos casos envolvendo adolescentes entre 12 e 17 anos. Para dra. Mayara, crianças e adolescentes reproduzem aquilo que veem na sociedade. “Eles espelham o que é produzido culturalmente. Se vivemos numa lógica hierarquizante, machista, isso aparece nas relações entre meninos e meninas", enfatizou.
Nesse sentido, ela defende que tanto escola quanto família precisam atuar de forma preventiva, promovendo uma educação para o respeito e para a igualdade de gênero. “É preciso legitimar o lugar das meninas como sujeitos de direitos e oferecer referências positivas dentro de casa, na escola e na comunidade. Para os meninos, é fundamental discutir novas masculinidades e ensinar a lidar com frustrações desde a infância.”
A psicóloga alerta ainda que o bullying e o cyberbullying são expressões de violência que afetam profundamente a autoestima e a identidade dos jovens. “Às vezes tratamos o bullying como algo menor, mas ele mina a autoestima e a forma como o adolescente se percebe no mundo. Isso precisa ser acompanhado de perto por adultos.”
Por fim, Mayara Pérola ressalta a importância de políticas públicas que fortaleçam a escola como espaço de prevenção. “A escola tem responsabilidade — não culpa — de observar comportamentos, identificar situações de violência e promover projetos de educação emocional e de diversidade. Mas é preciso que haja investimento do Estado: ampliação do quadro de profissionais, apoio psicológico e formação de professores. Só assim será possível romper esse ciclo e garantir um ambiente mais seguro para todos.”
Escolas precisam tratar violência e machismo de forma contínua
A professora doutora Alyne Nunes acredita que a forma como as escolas lidam com temas como machismo e violência ainda é insuficiente.
Segundo ela, as instituições têm falhado ao tratar essas discussões de maneira tangencial, sem estruturar o currículo pedagógico para incluir esses temas de forma contínua. Normalmente, esses assuntos aparecem apenas em datas específicas ou quando há um mês dedicado à discussão. Para a professora, questões de violência, especialmente as estruturais, deveriam ser trabalhadas diariamente em todos os espaços escolares — na sala de aula, no pátio, entre funcionários e professores.
“É necessário compreender como essas violências estão arraigadas na sociedade. Muitas vezes, os comportamentos violentos dos adolescentes têm origem nas vivências e no contexto em que estão inseridos. A escola acaba sendo o espaço onde esses conflitos são externalizados, e por isso deve acionar também os mecanismos legais, como o Conselho Tutelar, para entender e intervir em cada caso", disse em entrevista à coluna Enem e Educação.
Para a professora, projetos escolares devem partir de uma sondagem da realidade dos alunos. “É fundamental entender o que esses jovens consomem — música, filmes, conteúdo nas redes sociais — e como eles estão processando e reproduzindo a violência. Essa discussão precisa fazer parte da rotina escolar, em todas as disciplinas, e envolver toda a comunidade escolar na busca por estratégias conjuntas de enfrentamento”, defende.
O acolhimento das vítimas, inclusive, deveria ser institucional e acompanhado de medidas formais. Alyne Nunes destacou uma agressão não pode ser tratada apenas por meio da mediação de conflitos, sendo necessário reportá-la às autoridades, principalmente nos casos de violência física.
A professora lamentou a brutalidade dos casos recentes e reforçou que eles expõem falhas profundas na forma como a sociedade lida com diversidade e respeito. “É muito triste ver que algumas crianças não são humanizadas, que suas opiniões, vontades e decisões não importam. Algumas parecem nascer com o destino de viver a serviço do outro, dentro de um sistema machista e patriarcal. Até que ponto estamos exercitando nossa capacidade de respeitar o outro, sua diversidade e sua humanidade?”, questionou.