Adultização infantil ‘rouba etapas essenciais da infância’, dizem especialistas após vídeo de Felca

Felca, com 6 milhões de inscritos no Youtuber, denunciou adultização infantil em vídeo; o influencer Hytalo Santos foi preso após repercussão do caso

Por Mirella Araújo Publicado em 15/08/2025 às 16:15 | Atualizado em 15/08/2025 às 17:18

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A discussão sobre os riscos da exposição de crianças e adolescentes nas redes sociais ganhou força nas últimas semanas após a divulgação de um vídeo do youtuber e humorista Felipe Bressanim Pereira, 27 anos, conhecido como Felca, no qual ele denuncia o influenciador Hytalo Santos por exploração sexual de menores.

Com mais de seis milhões de inscritos, Felca publicou um vídeo de 50 minutos,no dia 6 de agosto,  explicando como algoritmos de plataformas digitais favorecem conteúdos que promovem a adultização de crianças e adolescentes, que são expostas a ambientes inapropriados ou situações de intimidade, e como influenciadores lucrariam com esse tipo de material de teor sexual.

O caso, que já era investigado pelo Ministério Público da Paraíba (MPPB), ganhou repercussão nacional e resultou, nesta sexta-feira (15), na prisão temporária de Hytalo Santos e de seu marido, Israel Nata Vicente, em São Paulo — alvos da denúncia no vídeo do youtuber Felca.  

A defesa do influenciador afirmou que ele é inocente, e que sempre se colocou à disposição das autoridades. "A defesa permanece acompanhando o caso de forma atenta e responsável, confiando no devido processo legal e na sensatez do Poder Judiciário”, disseram os advogados. 

 

Reprodução/Instagram
Imagem de Hytalo Santos - Reprodução/Instagram

Denúncias de abuso sexual infantil na internet aumentam 114% após vídeo de Felca

 

O número de denúncias de imagens de abuso e exploração sexual infantil recebidas pela SaferNet cresceu 114% após a viralização do vídeo de Felca. Entre 6 de agosto — data da publicação — e a madrugada da terça-feira (12), a ONG registrou 1.651 denúncias únicas, contra 770 no mesmo período de 2024.

As denúncias únicas são enviadas de forma anônima por usuários da internet e, após filtragem da SaferNet para eliminar links repetidos e agrupar comentários, são encaminhadas ao Ministério Público Federal (MPF). A análise do conteúdo e a verificação de indícios de crime ficam a cargo de técnicos e analistas do MPF.

Para Thiago Tavares, presidente da SaferNet, o aumento está diretamente ligado à repercussão do vídeo. “Há anos o tema do abuso sexual infantil online não gerava um debate tão grande na sociedade brasileira, e a repercussão do vídeo estimulou as pessoas a denunciar”, afirmou.

Os impactos da adultização na infância

A adultização infantil é a exposição precoce de crianças a comportamentos, responsabilidades e expectativas próprias da vida adulta. O fenômeno se torna ainda mais preocupante quando é amplificado pelas redes sociais.

Para Jaime Ribeiro, CEO da Educa Saúde Emocional, escritor e pesquisador das relações humanas na era digital, tanto as crianças inseridas nesse tipo de conteúdo quanto as que o consomem perdem o ritmo natural da infância e passam a interpretar o mundo com “códigos de adultos”, sem preparo emocional para isso.

“Isso acelera inseguranças, distorce a autoestima e a percepção de mundo. Interfere até mesmo na forma como a criança vai se relacionar com o próprio corpo e com as pessoas no futuro — não apenas em relacionamentos afetivos, mas também de amizade, com autoridades, professores, etc.”, afirmou Ribeiro em entrevista à coluna Enem e Educação.

Segundo ele, trata-se de “um roubo silencioso das etapas essenciais para um desenvolvimento infantil saudável”. No caso do influenciador Hytalo Santos, Ribeiro aponta que ele “foi até o limite do que poderia ser exposto, misturando humor e curiosidade — algo já presente em realities shows que, há muito tempo, flertam com a sensualidade”.

Ribeiro alertou que o pensamento crítico na internet ainda é limitado, e muitas pessoas não conseguem discernir se conteúdos como os de Hytalo Santos são entretenimento ou exploração. “Essa confusão leva à falta de atitude. Neste caso, houve exploração de menores, especialmente da Kamilynha, feita de forma escancarada, mas só veio à tona por conta do Felca e de sua relevância", destacou.

O pesquisador também reforçou que instituições que atuam na conscientização sobre o abuso sexual infantil já alertavam sobre casos assim, mas não eram ouvidas. “O próprio algoritmo não entrega esse tipo de conteúdo, o que limita o alcance das denúncias", criticou.

Conteúdos disfarçados: alerta para pais e responsáveis

Conteúdos de caráter sexual não estão mais restritos a “áreas ocultas da internet”. Hoje, eles aparecem em vídeos que, à primeira vista, parecem ingênuos, disfarçados de entretenimento, mas se inserem no processo de adultização infantil ao gerar engajamento.

Nesse contexto, é fundamental que pais e responsáveis assumam um papel ativo na mediação do acesso das crianças e adolescentes a esse universo, que vai muito além de “dancinhas” ou entretenimento juvenil.

A psicóloga e psicanalista Marília Galdino, especialista em Intervenções Clínicas Psicanalíticas, reforça que, durante a infância e adolescência, é essencial que os adultos facilitem experiências com o mundo de maneira saudável e cuidadosa.

“O que vivenciamos na infância e adolescência é determinante na forma como nos constituímos subjetivamente enquanto sujeitos, e esses efeitos permanecem durante toda a vida”, pontuou.

Segundo Marília, os impactos da adultização infantil são profundos, pois o simples fato de a criança ser colocada como objeto na produção desses conteúdos de exploração da imagem, constitui uma situação abusiva grave. “Quando a criança se expõe, ela vê números, likes, e cria a ideia de que é amada porque está se expondo, que aquelas pessoas de alguma forma estão dando retorno positivo", afirmou.

“A criança ainda não tem maturidade para identificar o que é abuso. Por isso, todos nós, adultos, temos responsabilidade com as infâncias. Se não for educada, protegida e orientada, ela não conseguirá reconhecer violência ou abuso”, completou a psicanalista, em entrevista à coluna Enem e Educação.

 

Istock/fizkes
Mãe jovem preocupada controlando adolescente usando smartphone. - Istock/fizkes

Proteção para expor e orientar o acesso aos conteúdos na internet

A pedagoga e educadora parental Mariana Lindoso, conhecida pelo perfil no Instagram Turma da Tia Mari, trabalha com criação de conteúdo para internet há 13 anos. Ela é mãe de Davi, 15 anos, Caio, 9 anos, e Olívia, 6 anos.

Ao compartilhar sua rotina, Mariana sempre teve o cuidado com relação à imagem das crianças em seu perfil. "Eu sempre tive muito claro que, na internet, aquilo que a gente publica deixa de estar sob o nosso controle. E as crianças não têm essa maturidade para decidir sobre sua própria exposição. Então fui estabelecendo limites, mostrava os momentos, mas preservava as informações ou situações que pudessem expor e até rotular", explicou a pedagoga, em entrevista à coluna Enem e Educação.

Segundo Mariana, o ambiente digital precisa ser encarado com a mesma seriedade do mundo físico. Do mesmo jeito que não podemos deixar uma criança atravessar a rua sozinha, também não podemos deixar que ela navegue pela internet sem vigilância e monitoramento.

"É essencial que a gente cuide do que elas estão consumindo na internet. Esse conteúdo, eu sempre digo, vai moldar os valores, a linguagem delas, a visão do mundo, e por isso precisamos ter essa responsabilidade. Então temos uma função dupla: precisamos proteger na hora de expor, mas orientar na hora de permitir acesso", concluiu.

A educadora parental reforça ainda que expor crianças a um comportamento adultizado, seja da forma como ela é vestida ou no jeito de se expressar na sexualização precoce, ela vai acabar pulando etapas importantes no seu desenvolvimento. 

"A sociedade e a mídia precisam rever seu papel, porque muitas vezes elas romantizam e até viralizam esses comportamentos inadequados. Criança precisa de infância, e nosso papel é assegurar que elas tenham esse tempo e espaço para serem crianças", afirmou Mariana Lindoso

 

Arquivo Pessoal
Mariana Lindoso, pedagoga e educadora parental - Arquivo Pessoal

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