Brasil não forneceu urânio ao Irã, nem exporta o metal para fins bélicos
Postagens descontextualizam fala de Lula sobre tratado com Irã; acordo feito não previa fornecimento de urânio e foi rejeitado pelos EUA em 2010

O Brasil não enviou urânio para fabricação de armas nucleares no Irã, ao contrário do que sugerem publicações do X.
Os vídeos investigados tiram de contexto uma fala do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) durante a 15ª Cúpula dos Brics, realizada em 2023, em que ele defende o convite ao Irã para integrar o bloco econômico.
No vídeo, Lula cita um acordo sobre urânio feito com o Irã, mas é uma referência a um acordo feito em 2010, mediado pelo Brasil enquanto membro rotativo do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU).
O tratado previa envio de urânio enriquecido da Turquia para pesquisas médicas no Irã, sem qualquer menção a fornecimento brasileiro do metal ou uso militar.
O tratado foi vetado pelos Estados Unidos, que firmou acordo com o Irã anos depois.
Em nota, a Secretaria de Comunicação (Secom) do Planalto desmentiu o boato e afirmou que o Brasil não forneceu urânio ao Irã e que não vende urânio para fins bélicos.
O Brasil faz parte do Tratado sobre a Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) e do Tratado para a Proscrição de Armas Nucleares na América Latina e no Caribe (Tratado de Tlatelolco).
Além disso, todas as instalações nucleares do Brasil são inspecionadas pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), da ONU, e pela Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC).
Os conteúdos também acrescentam outra informação incorreta de que o Brasil forneceu urânio ao atracamento de dois navios iranianos no Rio de Janeiro (RJ) em 2023.
O porta-helicópteros IRIS Makran e a fragata IRIS Dena chegaram em solo brasileiro em 26 de fevereiro e ficaram até 4 de março daquele ano.
Na ocasião, a Marinha do Brasil autorizou “desembarque da tripulação e convívio social, observando normas sanitárias locais vigentes em conformidade com as condições epidemiológicas na ocasião da visita”.
Não há indícios de que o Brasil tenha enviado urânio ou qualquer outro item às embarcações.
Quem criou o conteúdo investigado pelo Comprova
O primeiro vídeo foi publicado por um perfil no X que se identifica apenas com emojis da bandeira do Brasil, do signo de leão e de Israel.
A conta soma 7,8 mil seguidores e, até a publicação desta verificação, o post registrava 246,5 mil visualizações, 10 mil curtidas e 3 mil repostagens.
A descrição exalta pautas da direita, afirma “Deus acima de tudo” e faz críticas ao PT (“#EsquerdaNunca”).
As publicações, em geral, defendem políticas dos Estados Unidos, apoiam Israel e chamam o presidente Luiz Inácio Lula da Silva de “ladrão”.
O Comprova tentou contato com o responsável, mas não obteve resposta.
A segunda peça de desinformação partiu de um perfil do X que utiliza imagens e vídeos de um avatar supostamente gerado por inteligência artificial — de acordo com a Hive Moderation, que analisou a foto do perfil e um vídeo publicado, há mais de 99% de probabilidade de que esses conteúdos sejam sintéticos.
Ainda assim, vale lembrar que ferramentas de reconhecimento de IA podem apresentar falsos positivos e não são infalíveis.
A conta reúne 5,7 mil seguidores e o post alcançou 35,8 mil visualizações, 2 mil curtidas e 1 mil compartilhamentos.
O perfil publica conteúdo elogioso a Jair Bolsonaro e críticas sistemáticas ao Irã, ao PT, ao Supremo Tribunal Federal e a Lula.
Assim como no primeiro caso, o Comprova procurou o responsável, recebeu um breve retorno, mas logo em seguida foi bloqueado pelo perfil.
Por que as pessoas podem ter acreditado?
A postagem combina conteúdo enganoso, manipulação emocional e insinuação conspiratória visando gerar indignação política.
Ela utiliza táticas como linguagem inflamatória, exemplificada por expressões como “Lula ladrão”, “traição silenciosa” e a insinuação de que “a esquerda vai fingir que não aconteceu”.
Essas frases são típicas de discursos polarizadores, que provocam reações emocionais intensas, especialmente em públicos já predispostos contra o presidente.
A postagem também sugere uma conspiração ao mencionar o Mossad, serviço secreto israelense, com um perfil falso (@MOSSADil).
Essa técnica é comum na desinformação conspiratória que tenta conferir legitimidade ao conteúdo, ou difundir a ideia de um “vazamento interno”.
Isso pode levar a audiência a acreditar na existência de vigilância ou retaliação internacional iminente, sem qualquer evidência real.
Acordo entre Brasil e Irã era para pesquisas médicas
Os vídeos analisados mostram trecho de discurso de Lula durante a 15ª Cúpula dos Brics, em 2023, na cidade sul-africana de Joanesburgo.
Na ocasião, o petista defendia o convite feito ao Irã para integrar o bloco econômico.
Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Egito, Etiópia e Argentina também foram convidados.
Na mesma fala, Lula comenta sobre um acordo de enriquecimento de urânio, fala que foi tirada de contexto para sugerir que o Brasil enviou urânio, metal utilizado na geração de energia nuclear e em armamentos, para o país do Oriente Médio.
O acordo a que o presidente se refere não previa, porém, o envio do material pelo Brasil.
O acordo foi, além disso, elogiado pelo secretário-geral da ONU na época.
O tratado foi feito por Brasil e Turquia, na época membros rotativos do Conselho de Segurança da ONU.
O acordo previa o envio de urânio pouco enriquecido para o país turco que, por sua vez, enviaria urânio enriquecido ao Irã para ser utilizado em pesquisas médicas.
A negociação buscava reduzir as sanções ao programa nuclear iraniano, mas foi rejeitada pela Casa Branca, que impôs novas sanções ao Irã.
Em 2012, a diplomacia brasileira atuou na mediação de um acordo entre Irã e Estados Unidos, mas Washington voltou atrás na própria proposta.
O acordo entre EUA e Irã foi finalmente firmado em 2015 (até ser interrompido por Donald Trump em 2018).
Navios iranianos no Brasil
Os boatos foram compartilhados até mesmo por figuras públicas, como o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP).
O filho do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) compartilhou imagens de duas manchetes de 2023: uma de fevereiro, que fala sobre os navios iranianos, e outra de agosto, sobre o sumiço de duas ampolas de urânio em Resende (RJ).
“Não é algo confirmado, mas ninguém duvidaria que estas 2 notícias possam ter relação”, diz a legenda.
Não há qualquer relação entre o sumiço das ampolas, que aconteceu meses após a saída dos navios, e o suposto envio de urânio ao Irã.
Em nota, as Indústrias Nucleares do Brasil (INB), empresa pública autorizada a extrair e processar o metal, afirmou que o caso do desaparecimento foi arquivado pelo Ministério Público após “rigorosa apuração que comprovou a total inexistência de qualquer ato ilícito”.
“A investigação concluiu que se tratou de erro operacional interno, sem qualquer consequência externa. Qualquer narrativa que sugira risco ou ilegalidade é falsa, irresponsável e totalmente desconectada da realidade dos fatos oficiais. Não houve crime, dano ambiental, nem qualquer risco à população no episódio citado”, informa.
A nota do governo federal também afirma que a “INB não tem qualquer negócio com o Irã e jamais teve”.
Fontes que consultamos
O Comprova utilizou como base publicações da BBC News Brasil, G1, UOL, Agência Brasil, Memorial da Democracia e do Diário Oficial da União, além de documentos oficiais como o Tratado sobre a Não Proliferação de Armas Nucleares e o Tratado de Tlatelolco.
Também foi consultada uma nota oficial da Indústrias Nucleares do Brasil. Para verificar a autenticidade visual das imagens analisadas, foi utilizada a ferramenta Hive Moderation, que detecta a probabilidade de conteúdo gerado por inteligência artificial.
Por que o Comprova investigou essa publicação
O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas, saúde, mudanças climáticas, eleições e golpes virtuais e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento.
Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.
Outras checagens sobre o tema
Estadão Verifica, Boatos.org e Aos Fatos já desmentiram a mesma desinformação verificada aqui.
A checagem foi publicada em 19 de junho de 2025 pelo Comprova — coalizão formada por 42 veículos de comunicação que verifica conteúdos virais.
A investigação foi conduzida pelo Jornal do Commercio, UOL e Correio Braziliense, e o conteúdo também passou por verificação de Terra, Folha de S. Paulo e NSC Comunicação.