O Agente Secreto une thriller e ação à identidade recifense com muita autenticidade
O filme de Kleber Mendonça Filho chega aos cinemas em novembro, mas passa por uma turnê de pré-estreia no Brasil com primeira exibição no Recife

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A pré-estreia de O Agente Secreto, no Recife, realizada na última quarta-feira (10), se desenrolou como um grande evento, reunindo público, imprensa, convidados importantes e parte da equipe do longa em um tapete vermelho, seguido da exibição. Não é de se admirar todo o alarde: a nova produção de Kleber Mendonça Filho não sai da boca dos cinéfilos há meses.
Após um desempenho histórico em Cannes, onde levou os prêmios de Melhor Diretor e Melhor Ator, este pelo trabalho de Wagner Moura, O Agente Secreto, se tornou um dos filmes mais aguardados do ano, especialmente no Recife, onde a maior parte da trama se desdobra. E foi essa a cidade que a Vitrine Filmes escolheu para inaugurar o longa no Brasil para o público geral, dando início a uma turnê no país que faz parte da maior campanha já realizada pela produtora.
Na narrativa pernambucana, Armando, personagem de Moura, deixa São Paulo e volta ao Recife sob o nome falso de Marcelo para reencontrar seu filho, que mora com os pais da sua falecida esposa, Fátima, vivida por Alice Carvalho. A ideia é tornar a conviver com o menino em um lugar seguro, coisa que sua realidade está longe de ser. Armando passa a morar em um condomínio de “refugiados”, pessoas que trocam de identidade para se manterem escondidas, organizado por Dona Sebastiana.
Para se adaptar à vida como Marcelo, ele começa a trabalhar em um Instituto de Identificação, local que ele mesmo escolheu, visando encontrar a identidade da sua mãe. Só que a tendência previsível de um trabalho burocrático é quebrada por Euclides, um delegado corrupto interpretado por Robério Diógenes que, além de representar tudo o que o protagonista odeia, vai contribuir indiretamente com um homem que deseja sua morte. Devagar, o filme começa a entregar pedacinhos da história de Armando, levando o espectador a desvendar o motivo da perseguição, os verdadeiros objetivos do personagem e quem ele era antes de se transformar em Marcelo.
Identidade recifense
Um dos grandes destaques de O Agente Secreto, detalhe que era um ponto de discussão sobre o filme ainda durante as gravações, é a imersão no Recife dos anos 1970, década em que a história de Armando é retratada. Dá para perceber a atenção a cada nuance do espaço e do tempo tanto no macro, em enquadramentos bem abertos, onde carros antigos e figurantes caracterizados de maneira correspondente à época passeiam, cruzando as pontes da cidade e atravessando ruas adornadas por elementos e prédios que não só fazem sentido como de fato existiram; quanto no micro, como quando Clóvis, jovem que ajuda Dona Sebastiana nos serviços do condomínio, surge, por poucos segundos, com uma camiseta referenciando a Livro 7, uma livraria recifense que já foi a maior do Brasil. A experiência de olhar para um Recife que se foi com esse cuidado já é, por si só, memorável. Mas se abrir para as entrelinhas, para os traços que aparecem em momentos curtos, é especialmente recompensador.
Também é interessante observar como Kleber Mendonça Filho coloca elementos que remetem muito à sua identidade e abordagem em outros filmes neste longa. Aqui, por exemplo, a história toca em um ponto já trabalhado em Retratos Fantasmas e Aquarius, mesmo que rapidamente: a substituição de prédios históricos por empreendimentos modernos e genéricos, tema que é muito caro ao diretor e bastante discutido na cidade. O lado bairrista recifense do cineasta também se manifesta nas várias referências à lenda local da perna cabeluda, perna esta que simboliza, em O Agente Secreto, um ato corrupto que, embora insistam em esconder, sempre dá um jeito de vir à tona, das formas mais inusitadas possíveis.
Quem é de Pernambuco provavelmente vai captar uma alusão clara ao Caso Miguel, menino que caiu do 9º andar de um prédio de luxo no Recife após ter sido deixado aos cuidados da patroa da mãe, enquanto ela passeava com os cachorros da família para qual trabalhava. O diretor incorpora muitos aspectos do que faz parte da história e da cultura da cidade de um jeito bem autoral na narrativa.
Espontaneidade dos personagens
A entrega de todo o elenco do filme também é muito nítida. Todas as interações entre os personagens, dos principais aos que só aparecem em momentos específicos, soam muito naturais — e muito recifenses. É tão fácil se convencer dos vínculos entre eles, da forma como o filho de Armando sente sua falta e é apaixonado por tubarões, de suas cartas e desenhos, da maneira como os moradores do condomínio do protagonista se familiarizam, dos sentimentos de Seu Alexandre, pai de Fátima, por ele e pelo neto. As relações e diálogos fluem muito bem em toda a história, colocando, nas sutilezas, detalhes sobre os seus afetos. Logo no início, na primeira conversa entre neto e avô, já dá para ter alguma noção sobre como funciona a dinâmica da família, sobre a obsessão do mais novo com tubarões e o cuidado do mais velho com ele, se preocupando com sua insistência em assistir ao filme Tubarão fora da faixa de idade, por exemplo.
Em uma outra cena, em que o ator Udo Kier faz uma participação magistral, o delegado Euclides, junto com policiais que agem sob seu comando, leva Armando para conhecer Hans, um alfaiate judeu que carrega sequelas físicas e psicológicas da 2ª Guerra Mundial. Só que cabeça dos tiras, o personagem é um “soldado alemão legítimo”, conforme eles descrevem. Depois de muita insistência, Hans mostra todas as cicatrizes que causadas pelo Holocausto em seu corpo. Em poucos minutos, é possível observar muitas nuances por meio de conversas e expressões: a adoração desses policiais, que também representam a opressão do regime militar, ao nazismo, e o desconforto do protagonista misturado com o temor de parecer que diverge demais da posição dos colegas.
Embora com tramas e cenas pesadas, O Agente Secreto tem pontas de humor, que funcionam bem porque soam muito espontâneas. Não são piadas escrachadas, mas aquelas tiradas do dia a dia, aqueles comentários inusitados que surgem na ponta da língua no meio das conversas e dos acontecimentos.
Ruptura
Embora se passe nos anos 1977, o filme tem algumas quebras de imersão, bruscas, até. Elas são intencionais, mas acabam causando uma certa desconexão com a história, mesmo que tenham relação com ela. Os personagens que tomam à tela nesses momentos também são bem menos carismáticos e a motivação para as atitudes de um deles é muito menos trabalhada, o que aumenta essa sensação de ruptura. Talvez a trama funcionasse melhor sem essa fragmentação, que se apresenta de forma mais intensa no fim do filme, onde o desfecho de Armando é mais contado do que mostrado.
Ainda que essas frações possam ser incômodas, O Agente Secreto envolve o espectador em um thriller bem desenvolvido e imersivo, com personagens que exalam muita naturalidade e familiaridade, fáceis de se apegar. Os detalhes da história carregam bastante autenticidade, deixando a experiência de ver o filme bem mais marcante. É o tipo de longa para se ver nos cinemas — se possível, o São Luiz, no Recife, para quem quer uma surpresa a mais.