Brasil tenta equilibrar relação com Trump e tradição diplomática em meio à tensão na América Latina, avalia especialista
Para Flávia Loss, aproximação entre Lula e Trump é positiva, mas exige prudência para preservar papel histórico do Brasil como mediador regional

O governo brasileiro tenta navegar por um cenário cada vez mais turbulento nas relações internacionais.
A escalada de tensões entre os Estados Unidos e países da América Latina, especialmente Venezuela e Colômbia, preocupa Brasília não apenas por possíveis impactos geopolíticos, mas também por ameaçar o ambiente de negociação direta que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva busca estabelecer com Donald Trump.
As tarifas de 50% impostas por Washington sobre produtos brasileiros desde agosto provocaram um desgaste sem precedentes nas relações bilaterais.
Agora, a diplomacia tenta reconstruir pontes, apostando em um diálogo direto entre os dois presidentes ainda este ano.
Em meio a esse contexto, a professora Flávia Loss de Araújo, especialista em Relações Internacionais do Instituto Mauá de Tecnologia, avalia que o país voltou a contar com instrumentos diplomáticos formais — um avanço importante após um período de ruídos e informalidades.
Segundo ela, o Brasil vive “uma situação bem complicada”, mas há sinais de reorganização.
“Agora nós voltamos a ter os canais diplomáticos tradicionais operando, ou seja, a diplomacia voltou a fazer parte das negociações”. Antes, outros atores que não eram do Estado brasileiro conversavam, e isso estava atrapalhando bastante. Agora, presidente conversa com presidente, chanceleria com chanceleria, diplomata com diplomata — e isso é o que pode apaziguar a situação”, afirmou em entrevista à Rádio Jornal nesta terça-feira (21).
Flávia considera que o governo brasileiro tenta reconstruir uma relação de confiança com os Estados Unidos, sem abrir mão de sua postura histórica de neutralidade e diálogo.
“O assunto Brasil é uma pauta, o assunto América Latina é outra. O Brasil tem que tomar muito cuidado com as declarações feitas a respeito da região. Pelo que percebo, o governo já entendeu esse recado e as declarações de Lula têm sido bem abaixo do tom do que seriam em outras ocasiões”, ressaltou.
Posição delicada
Enquanto o Planalto busca aliviar as tensões bilaterais, Trump intensifica os ataques a líderes da região.
Nos últimos dias, o presidente americano chamou o colombiano Gustavo Petro de “traficante de drogas ilegal” e ameaçou cortar subsídios ao país, além de confirmar operações secretas da CIA próximas à costa venezuelana — o que levou Caracas a mobilizar tropas e navios de guerra.
Para Flávia Loss, esse tipo de postura coloca o Brasil em posição delicada.
“A política externa brasileira tem uma tradição de negociação, apaziguamento e de não interferência nos problemas regionais. Essa postura vai totalmente de frente com o que Trump acredita, dita e fala sobre a nossa região. Por isso, o Brasil precisa reafirmar que não aceita interferências na política doméstica de outros países, mas, ao mesmo tempo, cultivar uma boa relação com o governo americano”, pontuou.
A professora lembra que, em 2024, os dois países celebraram 200 anos de relações diplomáticas — o que torna o momento atual um ponto fora da curva.
“O que está acontecendo é um parêntese na história entre Brasil e Estados Unidos. Sempre tivemos boas relações, tanto comerciais quanto políticas”, disse.
Agravamento da crise venezuelana
Flávia também alerta para um agravamento na crise venezuelana. Segundo ela, há indícios concretos de que os EUA consideram uma operação militar terrestre no país vizinho.
“Do modo como as coisas estão colocadas, sim. Não necessariamente para derrubar Maduro, mas a situação está muito tensa — mais do que vimos na própria Guerra Fria. O deslocamento de frotas para o litoral da Venezuela e o anúncio de operações da CIA são sinais claros de escalada. A dúvida é: trata-se de combate ao narcotráfico ou de tentativa de mudança de regime? Essa resposta ainda não temos”, disse.
A possibilidade de conflito direto entre Washington e Caracas preocupa especialmente o Brasil, que compartilha fronteira com a Venezuela.
Uma intervenção militar, avalia a professora, teria efeitos imediatos sobre a estabilidade regional e poderia gerar crises humanitárias e econômicas.
“Uma guerra na nossa fronteira norte não interessa ao Brasil. Para defender nossos interesses, o melhor seria assumir o papel de mediador e buscar uma saída negociada.”
Lula como mediador
A professora acredita que Lula tem condições de exercer esse papel de mediação, mas precisa recuperar o tempo perdido.
“O atual líder venezuelano é muito mais radical e inflexível que Chávez. Depois das eleições do ano passado, houve um distanciamento grande — inclusive com ofensas ao Brasil. Ainda assim, o Itamaraty pode e deve tentar uma reaproximação”, defendeu.
Flávia vê como essencial que o Brasil reconquiste a confiança de Trump para poder atuar como intermediário.
“O presidente americano leva a política internacional em termos muito pessoais. Se Lula se sair bem na reunião, pode ganhar essa confiança e abrir espaço para exercer o papel de mediador. A segunda etapa é convencer Maduro a escutar o Brasil.”
Confira a entrevista completa:
Lei Magnitsky
Outro ponto abordado na entrevista foi a Lei Magnitsky, que permite sanções dos EUA a autoridades estrangeiras. Para a professora, a aplicação dessa medida em relação ao Brasil seria desproporcional e ofensiva à soberania nacional.
“Essa lei acaba sendo um instrumento de pressão muito forte. É preciso refletir se é necessário aplicá-la a um parceiro como o Brasil. Estamos falando de uma democracia sólida, de um país amigo e relevante no sistema internacional. Trata-se de um tom muito acima do necessário, aplicado a uma nação que tem mais semelhanças do que divergências com os Estados Unidos”, avaliou.
Sinais de moderação
Apesar do cenário tenso, Flávia Loss identifica sinais de moderação no comportamento recente do presidente Lula, especialmente nas declarações públicas sobre Trump. Questionada sobre a postura do mandatário brasileiro, ela avalia que há uma mudança deliberada de tom.
“O Lula já abaixou bastante o tom das críticas, justamente porque estamos num momento de aproximação. Pelos sinais que saem do Itamaraty, essa será a nova toada: críticas sutis, discurso diplomático e tentativa de conquistar a confiança do presidente americano.”
A professora acrescentou que a cautela é estratégica.
“Menos declarações, e sempre em tom mais suave, reforçam a tradição da política externa brasileira: a de não intervenção nos assuntos domésticos dos países da região. Isso é essencial quando se lida com um líder tão imprevisível e desconfiado em relação à América Latina.”
Cúpula da ASEAN na Malásia
O encontro entre Lula e Trump, que pode ocorrer ainda este ano durante a cúpula da ASEAN na Malásia, é visto em Brasília como decisivo para redefinir os rumos da relação bilateral.
Se bem-sucedido, pode não apenas aliviar as tarifas impostas aos produtos brasileiros, mas também restabelecer o protagonismo diplomático do país em um continente pressionado pela retórica bélica e pela incerteza.
Para Flávia Loss, o momento exige prudência. O Brasil precisa agir com cautela diplomática, mantendo o diálogo aberto com Washington sem romper com seus vizinhos latino-americanos.
“É hora de usar o que temos de melhor: a diplomacia”, concluiu a professora.