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Fernando Ribeiro Lins: Decisão do STF atenta contra o Estado Democrático de Direito

Não se trata de atacar o Judiciário, mas de defendê-lo de si mesmo. Um Poder que se coloca acima de qualquer controle não é guardião da Constituição

Por FERNANDO RIBEIRO LINS Publicado em 04/12/2025 às 11:40

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A decisão liminar proferida monocraticamente pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, em 3 de dezembro de 2025, em duas ações de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, representa um grave ataque ao Estado Democrático de Direito, desde a promulgação da Constituição de 1988.

Ao suspender dispositivos da Lei nº 1.079/1950 que garantiam a qualquer cidadão o direito de denunciar Ministros do STF por crimes de responsabilidade, a decisão cria uma casta judicial intocável, imune ao controle popular que fundamenta nossa República.

O art. 41 da Lei do Impeachment, vigente há 74 anos e recepcionado pela Constituição, consagrava o princípio republicano de que todo poder emana do povo. Permitia que qualquer brasileiro, diante de graves desvios, pudesse acionar o Senado Federal contra membros da mais alta Corte. Era a materialização do direito fundamental de petição e do controle social sobre o poder.

A suspensão deste dispositivo não é mera alteração processual: é a castração da soberania popular. Ao determinar que somente a Procuradoria-Geral da República (PGR) pode formular denúncias, o ministro relator subtrai do cidadão comum sua última ferramenta de fiscalização direta sobre o Judiciário.

Transforma o que era direito difuso em monopólio institucional, concentrando em um único agente político – o PGR, indicado pelo Executivo – o poder de decidir se um ministro do STF pode ou não ser investigado.
Esta restrição é especialmente grave quando consideramos que o STF expandiu dramaticamente seus poderes nos últimos anos, atuando como legislador, executor e julgador. Paradoxalmente, quanto mais poder a Corte acumula, menos fiscalização aceita. É a inversão completa da lógica republicana: onde deveria haver mais controle, cria-se blindagem absoluta.

A forma como a decisão foi tomada agrava ainda mais o atentado democrático. Uma única pessoa, sem debate colegiado, sem audiências públicas, sem participação do Congresso, alterou unilateralmente as regras de responsabilização de seus próprios pares. É o juiz legislando em causa própria, em benefício próprio, por decisão própria.

O argumento de urgência não se sustenta. A Lei nº 1.079/1950 atravessou governos democráticos e autoritários sem necessitar dessa "correção". Por que agora, exatamente quando cresce o questionamento público sobre o ativismo judicial, surge essa necessidade imperiosa de proteção? A resposta parece óbvia: trata-se de autoproteção corporativa travestida de interpretação constitucional.

Como se não bastasse eliminar o direito do cidadão, a decisão ainda impõe o quórum de 2/3 dos Senadores já na fase inicial de admissibilidade, quando a lei original exigia maioria simples. É criar uma muralha processual intransponível. Na prática, torna o impeachment de ministros do STF uma ficção jurídica, um direito que existe no papel, mas jamais poderá ser exercido.

Combinadas, essas medidas criam a tempestade perfeita contra o Estado de Direito: apenas um agente político pode denunciar e, mesmo que o faça, será necessária uma maioria política quase impossível de alcançar. Os ministros do STF tornam-se, na prática, irresponsáveis perante a República!

Esta decisão estabelece precedente gravíssimo. Se um ministro pode, sozinho, alterar as regras de sua própria fiscalização, o que impede futuras decisões monocráticas ainda mais autoritárias? Hoje suspende-se o direito de denúncia; amanhã, o que mais será vedado ao cidadão em nome de uma suposta "independência judicial"?

A independência do Judiciário é um princípio fundamental, do qual sou grande defensor, mas não pode ser confundida com irresponsabilidade absoluta. Juízes independentes não são juízes sem controle. A accountability – a obrigação de prestar contas e ser responsabilizado pelos seus atos – é irmã gêmea da independência em qualquer democracia saudável.

O momento exige resposta institucional firme. O Congresso Nacional não pode aceitar passivamente esta usurpação. O Senado Federal, esvaziado em suas prerrogativas constitucionais, deve reagir. A sociedade civil, privada de seu direito fundamental, precisa mobilizar-se.

Não se trata de atacar o Judiciário, mas de defendê-lo de si mesmo. Um Poder que se coloca acima de qualquer controle não é guardião da Constituição, é seu algoz. O Estado Democrático de Direito exige que nenhum Poder seja absoluto, que nenhuma autoridade seja intocável, que nenhum cidadão seja privado de seu direito fundamental de buscar justiça contra os poderosos!

Fernando J. Ribeiro Lins é Advogado, Conselheiro Federal da OAB (2025-2027) e Presidente da OAB/PE (2022-2024)

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