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Um indisfarçável incômodo

Nossas elites são emocionalmente ancoradas na cultura escravista e colonial do século XIX e veem o "povo" como um incômodo.............

Por FLÁVIO BRAYNER Publicado em 02/12/2025 às 0:00 | Atualizado em 02/12/2025 às 12:27

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Quando a cabeça decepada de Antônio Conselheiro (Canudos), foi trazida para Salvador, aos cuidados do professor Nina Rodrigues, catedrático de anatomia da Faculdade de Medicina da Bahia, Rodrigues, após a análise "frenológica" do crânio concluiu: "_Pelas dimensões cranianas, trata-se efetivamente de um fanático!"

Nina Rodrigues (1862-1906) era um declarado lombrosiano. Cesare Lombroso, autor do L'uomo delinquente (1876) criara a disciplina médico-forense da Criminologia, inspirado nas "pesquisas" frenológicas de Francis Gall: "ciência" que relaciona medidas cranianas com características psicológicas, tendências morais e aptidões cognitivas, criando a personagem (depois de uma longa "pesquisa" entre criminosos hediondos) do "criminoso nato" (há também o criminosos acidental, o epiléptico!), com tendências "naturais" para o crime. Uma outra influência também marcara nosso professor: a do Conde Arthur de Gobineau (1816-1882), autor do Estudo sobre a desigualdade das raças humanas (1853), que servira no corpo diplomático francês no Rio de Janeiro no II° Império e sustentava a tese do "racialismo": acreditava que as raças, mais do que a compleição craniana, era determinante para as características psicológicas, cognitivas e morais dos indivíduos. Nina caiu nesta balela e escreveu um artigo, As raças e a responsabilidade penal no Brasil, onde defendia a necessidade de termos dois códigos penais, um para os brancos e outro -mais brando- para os negros, em função destes últimos não disporem da consciência necessária para avaliar a natureza moral do crime. Esta determinação racial atingia também a cognição: não devíamos esperar dos negros nenhuma aptidão para níveis de abstração elevados. "_Apontem-me onde está o Baudelaire africano!".

A tese de que o meio ou a raça seriam determinantes para o perfil cultural, psicológico, emocional e cognitivo das pessoas teve largo curso entre nós até, pelo menos, os anos 30. Basta pensar em todas as propostas de "branqueamento da raça brasileira" (Sílvio Romero) através de políticas eugenistas. Eis a imensa tristeza de nossas elites: nunca seríamos Paris, nunca alcançaríamos os andares superiores da civilização. Diante do espetáculo de um povo inconsciente de seu destino, inepto e perigoso para a vida democrática, nada mais justo do que nossas elites assumirem a direção do projeto nacional sem correrem o risco de entregá-lo aos ignorantes (lembram-se da profunda desconfiança de nossas elites quando um metalúrgico semianalfabeto...?). Foi assim com a República, em 1924, em 1930, em 1947, em 1954, em 1964, em 1989, em 2016!

Esta tradição intelectual teve, também, consequências educativas. Chegada a República, levantou-se a questão da instrução pública e da educação nacional, base da formação do cidadão "apto a interpretar a lei e a legislar", sem o que, não seria possível se falar de "República". Ocorre que a escola republicana era aquela que formava o indivíduo para a universalidade da razão, expressa no saber científico ("neutro e universal"), retirando os indivíduos de seu paroquialismo cultural, linguístico, religioso. Se os negros não eram capazes de alcançar tais patamares, em função do determinismo racial, para que lhes dar escola republicana? O resultado disto, nós conhecemos!

Nossas elites são emocionalmente ancoradas na cultura escravista e colonial do século XIX e veem o "povo" como um incômodo e, assim, adotam o "decisionismo" jurídico como bandeira. Golpe contra a democracia e projeto nacional podem caminhar juntos.

Flávio Brayner, professor emérito da UFPE 

 

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