As novas famílias de Pernambuco e a urgência de se falar sobre proteção jurídica
Avanço das uniões consensuais e arranjos mais plurais provoca necessidade de compreensão e planejamento para evitar conflito e garantir direitos
Clique aqui e escute a matéria
O Censo 2022 do IBGE expõe uma realidade que nós, profissionais do Direito, já percebíamos no dia a dia: as famílias pernambucanas mudaram. E mudaram muito. Pela primeira vez, o estado tem praticamente o mesmo número de pessoas casadas e solteiras.
Mas o dado que mais chama minha atenção é outro: as uniões consensuais, sem casamento civil ou religioso, já representam 42,76% dos relacionamentos. A informalidade afetiva se tornou predominante em Pernambuco, revelando escolhas legítimas, modernas e coerentes com um tempo em que as relações se moldam mais à autonomia do que à tradição.
Essa transformação, porém, traz desafios jurídicos que não podem ser ignorados. Ainda é comum ouvir pessoas acreditando que a união estável garante automaticamente pensão, herança ou partilha de bens. Não garante. Ao contrário do casamento, que se prova com uma certidão, a união estável precisa ser demonstrada. E quando essa comprovação não existe (nenhum contrato, nenhuma escritura, nenhum registro) o companheiro pode enfrentar obstáculos enormes justamente no momento mais vulnerável: uma separação inesperada, um falecimento ou um conflito entre herdeiros.
Por isso, sempre repito algo que defendo com convicção: formalizar não é burocratizar o amor. É protegê-lo. Escrituras públicas e contratos de convivência deixam claros direitos e deveres, evitam interpretações equivocadas e reduzem significativamente disputas dolorosas entre filhos, familiares e companheiros. Planejamento patrimonial não é sobre desconfiança; é sobre responsabilidade emocional e financeira. Quando bem utilizados, esses instrumentos garantem dignidade, previsibilidade e respeito às escolhas de cada família.
O Censo também revela que mais de 10% dos lares abrigam mais de uma família e que 67% das casas não têm crianças menores de 10 anos. Estamos diante de um ambiente de envelhecimento populacional, vínculos múltiplos, famílias recompostas e arranjos cada vez mais complexos. Tudo isso demanda um olhar ainda mais sensível e técnico. Testamentos, pactos e acordos passam a ser fundamentais para assegurar que a vontade de cada pessoa prevaleça , especialmente em lares onde convivem histórias e afetos de origens diferentes.
Outro ponto importante é o mito da “dupla união estável”. Os tribunais brasileiros seguem o princípio da monogamia. Mesmo em situações de boa-fé ou dependência econômica, não há reconhecimento pleno de duas famílias simultâneas. Em casos excepcionais, pode até existir alguma proteção patrimonial limitada, mas jamais equiparação. Esse é um choque de realidade para quem acredita que relações paralelas terão o mesmo amparo da lei.
Desde 2017, casamento e união estável são praticamente equivalentes no campo sucessório, graças à decisão do STF. Companheiros herdarem como cônjuges é um avanço civilizatório. Mas a diferença prática permanece: provar a existência da união estável é essencial. E essa prova pode ser simples , quando a relação está documentada, ou extremamente difícil quando tudo se apoia apenas na informalidade.
Diante de famílias cada vez mais plurais, diversas e afetivamente complexas, o planejamento jurídico se torna parte do cuidado. Eu defendo que falar sobre testamentos, pactos, contratos de convivência e sucessão é um gesto de maturidade emocional e respeito mútuo. É garantir que o afeto que construímos durante a vida não se transforme em conflito depois dela. É, acima de tudo, assegurar que quem faz parte da nossa história esteja realmente protegido.
*Valéria Lucena é advogada especialista em Direito Sucessório