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A linguagem de nicho

O grande dilema é que o Brasil quer simplificar, padronizar e disciplinar tudo por meio da lei. Até mesmo a linguagem - seara da liberdade

Por DAYSE VASCONCELOS MAYER Publicado em 30/11/2025 às 0:00 | Atualizado em 30/11/2025 às 10:38

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Sujeito "pretensioso", "cabotino" e "arrogante!". Nem sempre - afirmo! Esses três adjetivos vêm à baila, após o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionar a Lei nº 15.263, que institui a Política Nacional de Linguagem Simples publicada no Diário Oficial do dia 17 de novembro de 2025.

O decreto veda a "linguagem de nicho", isto é, a comunicação com uso de vocabulário característico ou particular a determinados grupos. É formada por jargões, termos técnicos e estilos rebuscados ou herméticos, a exemplo da linguagem jurídica muito utilizada nas decisões do STF.

A nova lei tolhe o palavreado neutro em textos e documentos oficiais de órgãos e entidades da administração pública em todos os níveis (federal, estadual e municipal). Impõe a linguagem simples na comunicação oficial de harmonia com as regras gramaticais consolidadas e o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Veda o uso de novas formas de flexão de gênero e número, como "todes", utilizado pela imortal Heloísa Teixeira, falecida recentemente aos 85 anos. Consta da biografia da escritora que ela incluiu a palavra em seu discurso de posse com a finalidade de democratizar o conhecimento e possibilitar a inclusão de vozes marginalizadas.

O Conselho Nacional de Justiça (CNE) se juntou ao objetivo do Governo, numa modalidade de Pacto Nacional do Judiciário, para o uso de uma linguagem menos rebuscada e mais acessível na produção de decisões judiciais, ao final das quais as partes podem indagar: "Excelência, qual é mesmo a vossa decisão?" Com tal diretiva, a comunicação entre as instituições e a sociedade passará a ser - presume-se - mais aberta, clara e inteligível.

O grande dilema é que o Brasil quer simplificar, padronizar e disciplinar tudo por meio da lei. Até mesmo a linguagem - seara da liberdade, criatividade e reflexo dos nossos interesses, experiências e cultura. Ela permite que aflore em cada homem o sentimento especial de pertença que é parte essencial do que define um ser humano . Colocar a comunicação dentro de uma forma inviabiliza a fluidez e a inventividade. Queira ou não queira, a linguagem sempre foi e será um instrumento de poder e essa consciência é muito importante. Não é aceitável que se pretenda, de forma artificial, engessar a comunicação e até nivelando as pessoas por baixo.

Alguns exemplos simples permitem a compreensão desse raciocínio. Há poucos dias enviei uma mensagem para um grupo especial de WhatsApp. Pedia desculpas por um equívoco e usava o advérbio de tempo "doravante", para explicar que procuraria, daqui para a frente, tomar maior cuidado com os lembretes. O grupo esbarrou no significado da palavra "doravante", embora todos tivessem o nível superior. Certamente, com as explicações oferecidas, o vocabulário dos correspondentes se enriqueceu o que não teria sucedido se houvesse restrição ao uso da palavra.

Há outros episódios curiosos, agora sobre o acordo ortográfico. Eu trafegava há dois ou três meses pela avenida Rui Barbosa. Na esquina, encontrei um vendedor de frutas e logo percebi que havia iniciado a estação dos "diospiros", palavra usada em Portugal. Passei um bom tempo querendo saber o nome da fruta no Brasil. Mais adiante, no sinal de trânsito, o vendedor parou e perguntou se eu não desejava comprar um prato de "caqui". Exultei. Finalmente, eu poderia degustar a fruta quase vermelha, com bagos grandes e muito doces, usando o nome brasileiro, sem que me chamassem de presunçosa.

Por associação, recordei um episódio acontecido numa viagem a Roma. Deixei o hotel com um desejo enorme de comer morangos. Por mais que acochasse a memória, não conseguia recordar o nome da fruta em italiano. Lembrei-me que a linguagem gestual, tão viva na Itália, poderia substituir a linguagem verbal. Entrei numa frutaria e disse: Voglio comprare "morangui". O quitandeiro me olhou surpreso e respondeu: "Signora, non abbiamo quel frutto". Danado é que ele me dizia que não havia tal fruto, mas a cesta me dizia o contrário. Sorrindo de satisfação, apontei com o indicador: "Eccoli lì" (ali está ele). O velho me olhou meio perplexo, uniu o dedo polegar ao indicador, elevou a mão bem alto e gritou: "Signora, questa non è morangui" è fragoli". A partir dali eu jamais esqueci que morango em italiano é "fragoli", assim como caqui pode ser dipospiro.

Mas é preciso entender que nem sempre as palavras e expressões representam obstáculos à compreensão. Vejam a frase aparentemente simples e formada por palavras conhecidas: "Apanhei a morte em minhas mãos e percebi que ela era tão leve, que a soltei para poder viver". O texto, de um autor que não recordo o nome, é de uma grande beleza e simplicidade. Conhecemos todas as palavras, expressa o momento de aceitação da nossa mortalidade e da "insustentável leveza" da morte em contraposição ao enorme peso da vida com as suas ansiedades, dores, obstáculos lutas infindas. Há outras citações com vocábulos simples usadas por Nietsche: "Será possível que este santo ancião não tenha escutado no seu bosque que Deus já morreu?". A frase é uma metáfora contida na obra "Assim Falava Zaratustra". Questiona a ideia de que parece impossível ao homem, em contato com a natureza e em retiro espiritual ou solidão, não perceber a companhia e existência de Deus. Ela sugere, igualmente, que Deus não existe.

Em tudo isso pretendo dizer que as palavras, isoladas só ganham sentido, energia e função quando compõem frases e textos. Ítalo Calvino afirmava que "inventar em literatura é redescobrir palavras e histórias deixadas de lado pela memória coletiva e individual. Já Manuel Bandeira escreveu que "cada palavra deve estar no seu lugar exato porque todas têm uma função precisa, de caráter intelectivo ou puramente musical". Escrever selecionando cada palavra é um exercício que Kafka execrava. Em novembro de 1910, por exemplo, ele anotou em seu diário: "Quando sento-me diante da escrivaninha, meus ânimos não são melhores do que os do indivíduo que cai no meio da Place de l'Opéra e quebra as duas pernas".

Lendo tudo isso ouso propor a respeito da lei e das palavras e suas idiossincrasias, uma norma substitutiva sobre o uso das palavras Seria exatamente assim:

Art. 1º - É proibido lutar com as palavras. Art. 2º Caso as palavras não lhe satisfaçam plenamente, abandone-as sem nenhum arrependimento.

Dayse de Vasconcelos Mayer,  doutora em ciências jurídico-políticas

 

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