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A barbárie como argumento eleitoral

A operação no Alemão e Penha é, portanto, um produto. Um produto narrativo da ultradireita para tentar reocupar centralidade discursiva.

Por GUSTAVO MONTEIRO Publicado em 26/11/2025 às 0:00 | Atualizado em 26/11/2025 às 11:42

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A chamada megaoperação no Complexo do Alemão — tão cuidadosamente televisionada quanto cuidadosamente desprovida de estratégia — é menos sobre segurança pública, e mais sobre o velho e tosco cálculo de poder. Trata-se de um marketing eleitoral mortífero, executado com a frieza instrumental típica das forças políticas que, não podendo disputar hegemonia pelo convencimento racional, tentam produzi-la pela descarga de adrenalina — sangue como efeito especial. Não se trata — e é importante sublinhar — de política pública. Trata-se de um ato performático. Um gesto. Um gesto que usa cadáveres como pontuação política. Não se está aqui defendendo os criminosos encastelados atrás de barricadas, mantendo a população refém. Não. Contudo, no plano técnico, o que se fez não é "segurança"; é necropolítica de resultado imediato. A ação espetacularizada gera manchetes, gera likes, gera coesão emocional de uma audiência radicalizada — mas não altera a correlação estrutural entre criminalidade, renda, emprego, urbanização e captura territorial por facções. Como sempre: tira-se a "tropa operacional" e mantém-se intacta — porque intocada — a estrutura organizacional e financeira do crime. Põe-se a PM para matar o funcionário. E mantém-se blindado o patrão. No Brasil, o andar de cima do crime raramente é perturbado — e quando é, não há coletiva, helicóptero, subida ao morro, ministro de pistola na cintura. Porque o crime que realmente importa não tem tatuagem, mas CNPJ; não ostenta AR-15, mas offshore; não domina território, domina fluxo financeiro. E aqui está a ironia cínica: a própria PEC da Segurança — cuja pedra angular é coordenação federativa, inteligência integrada e ataque ao capital ilícito a montante — é sabotada pelos mesmos que agora sobem o morro com câmeras, drones, discursos e o aplauso do baronato reacionário. Repita-se: não querem resolver o crime. Querem preservar o crime como ativo político. Porque o medo mobiliza — e uma população com medo vota mal. Se realmente quisessem política de segurança — e não teatro assassino — estariam discutindo: interoperabilidade de bancos de dados; cadeia de custódia digital; combate a empresas laranja; responsabilização financeira de redes de lavagem; responsabilização tributária de fluxos ilícitos; rastreabilidade algorítmica de supply chains criminalizados — o que, aliás, está na mesa da PEC. Mas isso não produz espetáculo. E política se faz — como sabemos — no Brasil do século XXI — menos por ideia do que por frisson. E há ainda uma consequência mais perversa — e raramente dita — que precisa ser exposta com todas as letras: operações desse tipo normalizam a violência. Quando o Estado mata sem medida, ele rebaixa o custo psicológico de matar. Ele envia um sinal regulatório brutal ao corpo social: a vida do outro é descartável. E, nesse ponto, o efeito colateral é devastador: se o homicídio vira solução legítima para o Estado, ele se converte também em solução barata para o particular. A violência pública educa a violência privada. É assim que se multiplicam mortes no trânsito por discussão banal, assassinatos em brigas domésticas, execuções por futilidade. A violência estatal sem regra não reprime a violência — ela a multiplica. Esse é o paradoxo do populismo penal: ao fingir combate ao crime pela matança, ele aumenta o ambiente geral propício ao crime violento. O Estado termina por se tornar fornecedor e legitimador daquilo que diz combater. A operação no Alemão e Penha é, portanto, um produto. Um produto narrativo da ultradireita para tentar reocupar centralidade discursiva, agora que Lula voltou a ser ator global relevante — vide a recomposição diplomática com EUA e UE, que deslocou o eixo do debate. É assim: não havendo projeto para o país — inventa-se um inimigo. A bala, nesse modelo, não é instrumento contra o crime. É instrumento contra a razão. E esse é o verdadeiro perigo institucional.

Gustavo Monteiro , advogado e sócio em PMZ Advogados

 

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