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Conversa no Museu

Ouvi dizer que os vigilantes da noite do Prédio Celso Furtado, quando as luzes se apagam, ouvem vozes de uma infinita e incompreensível

Por FLÁVIO BRAYNER Publicado em 25/11/2025 às 0:00 | Atualizado em 25/11/2025 às 11:11

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Quem leu o fenomenal "Conversa no Catedral" (Catedral é um bar!) de Vargas Llosa (1936-2025), deve se lembrar da passagem em que Zavalita conversa com Ambrósio (que tinha sido motorista de seu pai) e pergunta: "Em que momento da história do Peru, as coisas começaram a não dar certo?". Não sei se é possível definir ou localizar um momento - ou um evento- que, na história de uma nação, tenha sido absolutamente decisivo, a ponto de determinar seu fracasso como projeto nacional.

Acreditamos sempre que os "intelectuais" (especialmente os filósofos e historiadores) sabem sobre todos nós o que nós mesmos ignoramos: que conhecem a História - o que se passou e porque se passou- e o que poderia "ter sido", caso outro caminho tivesse sido escolhido pelas forças sociais vencedoras. É esse "silêncio dos vencidos" que evocamos para dizer aos nossos contemporâneos que o mundo atual poderia ser "outro", mas que ainda podemos agir para que o que virá seja a escolha "correta" (a velha ideia do "lado certo da história"; do "combater o bom combate"; do "não perder o trem da história", das "astúcias da dialética"; do "progresso do espírito"...!).

Há alguns dias, eu participei da inauguração do MUSEU DENIS BERNARDES da UFPE, instalado no mezanino do prédio CELSO FURTADO (antiga SUDENE), ali na Cidade Universitária. Denis foi meu professor no antigo Ginásio de Aplicação em 1969 e dedicou grande parte de sua vida acadêmica aos estudos históricos, sobretudo ao nosso Constitucionalismo, às revoluções pernambucanas do século XIX, ao pensamento e ação de Frei Caneca (sua verdadeira paixão!), além da própria história institucional da UFPE. Fez seu Doutorado de Terceiro Ciclo (não existe mais!), em Paris, com um grande historiador, especialista em Brasil - Fréderic Mauro- e terminou sua vida universitária como professor do Curso de Serviço Social (UFPE), tendo passado por inúmeros conselhos editoriais de revistas universitárias.

Certa vez, tive a oportunidade de conversar com ele um tema que muito se assemelha àquela passagem do "Conversa no Catedral": num exercício de contrafactualidade histórica - e até de ficção utópica!- Denis (1947-2012) me disse que se o republicanismo jacobino de Frei Caneca tivesse se encontrado com o liberalismo de José Bonifácio, nós teríamos tido um outro projeto de Estado Nacional: teríamos terminado a escravidão mais cedo e, no espírito republicano de Caneca, teríamos instalado um sistema nacional de instrução pública, universal, gratuito e obrigatório (inclusive para a população negra), coisa que nunca passou pela cabeça de nossos "republicanos"!

Denis estava convencido de que aqueles dois homens - um arcabuzado e o outro preterido pelo absolutismo de Pedro I- teriam instalado uma ideia moderna de Estado Nacional, de inspiração iluminista e republicana, que teria feito desse infeliz país, algo um pouco melhor. Mas ele lembrava também que nossos "liberais" eram "liberais para fora" (contra o Pacto Colonial, cujo monopólio e monopsônio comercial os prejudicava) e "conservadores para dentro" (manutenção da ordem escravista), como observou o historiador Fernando Novaes. O mais interessante em nossa mentalidade "liberal" (recordo que o Partido de Bolsonaro chama-se Partido... "Liberal"!) é que ela era, digamos, lockeana (John Locke), como mostrou o professor Vicente Barreto ("Política e ideologia no pensamento de José Bonifácio"). Locke achava que a nossa primeira propriedade era o próprio corpo, e era essa "propriedade" que assegurava nossa "liberdade". Assim, a propriedade antecedia a liberdade (ideia típica do liberalismo burguês). Ora, como os escravizados não eram proprietários do próprio corpo - que pertencia ao seu senhor- também não tinham direito à liberdade. E arrancar essa "propriedade" dos senhores era violar sua... liberdade, já que aquela antecede e fundamenta esta! Eis como nossas elites conseguiram harmonizar liberalismo com escravidão! Aliás, entre nós o Partido "Progressista" é reacionário; o "Liberal" é autoritário; o "Democrata" é golpista; o "Republicano" é pró-chacina...

Caneca nunca conversou com Bonifácio. Mas, agora, creio que, mesmo numa circunstância puramente espiritual, Denis pode se encontrar com Celso Furtado, ali naquele prédio em que a UFPE resolveu reuni-los, "post mortem", no mesmo espaço! Imaginemos, pois, Furtado defendendo um modelo de desenvolvimento regional baseado num determinado nível de tecnologia industrial capaz de gerar empregos e criar um mercado que, finalmente, desse fim ao "colonialismo interno", em que o Nordeste oferecia mão-de-obra desqualificada e recebia do Sudeste industrial produtos de valor agregado, numa relação de dependência regional que aprofundava ainda mais nossas desigualdades sociais. Imaginemos, também, que Denis, concordando com Furtado, acrescentaria: "não precisamos nos separar do Brasil. Precisamos instalar um republicanismo que aprofunde a nossa noção de Bem Comum e de universalidade de direitos, em que a escola pública - essa invenção do republicanismo francês- tivesse oferecido, em sua universalidade, os predicados necessários para que cada egresso pudesse gozar de um tipo de consciência e de capacidade de ação para um projeto comum de Nação soberana e livre, como queria Caneca".

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Ouvi dizer que os vigilantes da noite do Prédio Celso Furtado, quando as luzes se apagam, ouvem vozes de uma infinita e incompreensível conversa por trás das portas do Museu Denis Bernardes! Vai ver que...

Flávio Brayner , professor Emérito da UFPE

 

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