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Os resgates urgentes

O resgate urgente é lembrar o que a Constituição já consagra: a pessoa é fim, não meio. Há de ser resgatado o vínculo comunitário.

Por JONES FIGUEIRÊDO ALVES Publicado em 24/11/2025 às 0:00 | Atualizado em 24/11/2025 às 11:52

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Recente artigo da "Harvard Business Review" (https://hbr.org/) identificou o declínio de amizades significativas (que estão se tornando raras), como uma grave tendencia da sociedade moderna. No que denominou como "recessão das amizades", denuncia que a amizade não faz mais parte da vida cotidiana. As redes sociais substituíram o vínculo pelo contato, criando uma ilusão: quanto mais contatos temos, mais "relacionados" estamos. Vínculo exige estar junto, no mesmo mundo físico.

Há um isolamento social, reduzindo os relacionamentos mais próximos, quando as plataformas digitais oferecem um simulacro de amizade. Criou-se uma cultura da pressa e a vida rápida não tem espaço para relações profundas, só para relações úteis ou superficiais. A amizade, que é uma obra paciente e duradoura, sucumbe ao imediatismo.

Nas redes sociais temos seguidores, curtidas, visualizações, interações, quando, porém, a amizade exige presença, escuta, partilha e memórias emocionais. É construída na continuidade dos dias, nos cafés demorados, nas conversas que não acabam. As pessoas tornaram-se "parceiros relacionais", não amigos e organizam-se vínculos segundo utilidade: networking, parcerias de projeto, e contatos de interesse. Foram treinadas para relações funcionais, não existenciais. Parcerias resolvem problemas. Amizades resolvem a existência.

Em sua obra "Top Five Regrets of the Dying" ("Os Cinco Maiores Arrependimentos de Quem Está Morrendo"), de 2019, a enfermeira australiana Bonnie Ware, em seus cuidados com pacientes terminais, relatou lamentos de moribundos que gostariam de ter mantido contatos mais estreitos com seus amigos.

Eis o primeiro resgate urgente: as amizades exigem aprendizado, esforço e convivência, reclamando que sejam aprofundadas a cada dia, como fontes de felicidade.

Em uma sociedade fragmentada, hiperveloz, hiperconectada e, ao mesmo tempo, profundamente solitária, alguns resgates se tornam urgentes não por nostalgia, mas por sobrevivência humana.

A propósito, avocamos artigo nosso (JC 18.11.25) sobre a criança como presença de Deus. Resgatar a criança como centro ético em sua proteção integral é outro resgate que se impõe porque uma sociedade que perde a criança perde o futuro. As crianças na vulnerabilidade de suas pobrezas precisam ser salvas.

Devemos resgatar a dignidade humana concreta, não apenas abstrata, como resposta civilizatória onde cada vida em seu valor próprio. Vivemos um tempo em que o valor da pessoa é muitas vezes medido por produtividade, performance e consumo. Isso inclui combater a desumanização nas redes e nas instituições.

O resgate urgente é lembrar o que a Constituição já consagra: a pessoa é fim, não meio.

Há de ser resgatado o vínculo comunitário. O resgate é o da "comunidade de presença", o estar junto, o ouvir, o envolver-se na vida do outro. Resgatar o tempo humano na convivência. O resgate é retornar ao tempo do cultivo, do amadurecimento, da pausa. Arendt, Byung-Chul Han e os místicos demostram:

sem escuta, sem diálogo, não há sabedoria; sem sabedoria não há civilização.

Demais disso, impõe-se resgatar urgente o direito como missão civilizatória. O direito não é mera técnica. É cultura, ética pública, projeto de sociedade. O resgate é entender o direito não como instrumento de coerção, mas de cuidado, de proteção, principalmente dos mais pobres e vulneráveis. Hoje, o mais urgente é fortalecer garantias fundamentais; proteger idosos, crianças, pessoas com deficiência; humanizar a justiça nas suas tomadas de decisão e resgatar a linguagem simples do direito como ponte, não como muro.

Agora, diante da COP 30-Brasil/Amazônia, realizada em Belém, também é urgente resgatarmos a nossa relação com a Terra. O planeta está exausto. A ecologia deixou de ser um tema ambiental e tornou-se um tema civilizacional. É um resgate moral: a Terra não é "recurso", é "casa".

Na esfera dos valores éticos, impõe-se resgatar a palavra verdadeira. Vivemos uma inflação da fala. É urgente recuperar a responsabilidade discursiva, a promessa que se cumpre, a palavra que cura e não fere. A palavra que emana da honestidade como sentido de vida. Do contrário, a palavra continuará como o bem mais escasso de nosso tempo. Isso também é política, a política das pequenas decências, como dizia Drummond. É difícil construir vínculos duradouros quando as palavras perdem densidade.

Resgatar o afeto público é outro valor ético a recuperar. A frieza social é um sintoma de mal-estar civilizatório. O resgate é devolver afeto ao cotidiano, com gentileza, hospitalidade, gratidão e perdão.

Resgatar o sentido, este talvez seja o resgate mais urgente de todos. A sociedade contemporânea está órfã de sentido, como dizia Viktor Frankl. Precisamos recuperar o porquê de viver; o valor do outro, o horizonte que orienta; a transcendência, seja espiritual, poética ou ética. Uma sociedade perde-se quando perde o sentido; reencontra-se quando reencontra o essencial.

Precisamos resgatar a imaginação. A imaginação morreu um pouco pela saturação de estímulos. Com a perda da imaginação não existe justiça (porque imaginar o outro é empatia); política (porque imaginar futuros é governar); a própria arte (porque imaginar o invisível é criar sentido).

A urgência do resgate é a do nosso pertencimento social interior. Não perdermos o encontro com o mundo, para podermos melhorá-lo. O urgente não é voltar ao passado, mas recuperar aquilo que nunca deveria ter sido perdido: a ternura, a justiça, o tempo, a palavra, a criança dentro de nós e o Deus que habita em cada rosto.

Jones Figueirêdo Alves, desembargador Emérito do TJPE. Advogado e parecerista

 

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