Dayse de Vasconcelos Mayer: O homem no ônibus de Clapham
As questões que dizem respeito ao céu, ao inferno, ao purgatório e ao juízo final estão registradas na Bíblia no formato de metáforas
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O historiador francês Jean Delumeau escreveu uma carta póstuma que foi publicada no diário francês La Croix. Extraímos dois parágrafos importantes no texto fúnebre: “Terminei a minha corrida. Possa eu adormecer-me na tua paz e no teu perdão. Não é o inferno que é eterno. Eterno é o amor que Deus nos tem. Não é o inferno que deve chamar a atenção dos homens. É o céu com o significado de amor incondicional”.
As questões que dizem respeito ao céu, ao inferno, ao purgatório e ao juízo final estão registradas na Bíblia no formato de metáforas. O Livro Sagrado – e essa conclusão nos assombra – contém a imagem do que existe de pior e de melhor no mundo, incluindo a ideia mal compreendida do Apocalipse. Difícil – mas não impossível – é aceitar a opinião de que usamos uma exegese ruinosa das palavras sagradas para expor os nossos medos e as nossas inseguranças.
Convertemos em inquietação e ameaça tudo aquilo que julgamos difícil de entendimento. Temos dificuldade de aceitar que o mundo e o ser humano estão em constante mudança. Por isso a Bíblia, assim como sucede com um Código de leis, também está dependente de interpretação de acordo com o tempo.
Delumeau, na condição de historiador católico, compreendeu essa realidade e deixou assente que a religião ocidental atravessa um momento crucial, com fraturas graves entre a necessidade de mudança e o anseio de permanência. O traço mais notável do historiador era o “ser objetivo”. Essa peculiaridade não é fácil de traduzir porque a objetividade é um conceito multifacetado. Agir de forma objetiva é obrar com imparcialidade e sem se deixar influenciar pela opinião pública, ato impossível, na era das grandes mídias e das redes de comunicação.
A origem da locução “historiador objetivo” está associada a um bairro popular de Londres de nome Clapham que deu origem à metáfora “O homem no ônibus de Clapham”, conceito emergente do direito consuetudinário anglo-saxão, fundado na ideia de bom senso ou de pessoa razoável. Incorporamos o símbolo a esta crônica com uma tradução diferente. O ônibus que segue para Clapham está conduzindo passageiros com percepções distintas.
É preciso escolher, entre os passageiros aquele que melhor se adapta às circunstâncias. Para melhor entender tal raciocínio, lembramos da figura de John Lennon na fase mais conturbada dos Beatles. Nesse tempo, é conhecida a frase bastante sofrida do artista: "Quanto mais tenho, mais vejo e mais experiências adquiro, mais confuso fico sobre quem sou e qual o sentido da minha existência”.
Certa noite, no inverno de 1966, incapaz de se livrar do “vazio existencial” que o acometia, Lennon decidiu seguir o conselho de Jesus (“... quando orares, entra no teu quarto e, fechando a porta, ora a teu Pai, que está em secreto...”). Ele se trancou no banheiro de sua mansão em Weybridge, ajoelhou-se e implorou por um sinal, revelação ou indício de que seu apelo estava sendo escutado. O silêncio de Deus foi mal compreendido e ele se rebelou ao divulgar, na sequência, que “os Beatles são mais populares do que Jesus Cristo”.
Todavia, em 1971, ele deve ter encontrado a resposta que esperava quando lançou a música “Imagine” como forma de oração inspirada nos poemas de (V. James Mitchell). A letra é um convite utópico e pacifista para a vida sem inferno, sem nenhuma razão para matar ou morrer, num planeta despojado de fronteiras, sem conflitos, sem ganância e sem fome. Eis aí o que seria o homem padrão ou o homem de bom senso que transita no ônibus de Clapham. O veículo poderia encontrar entraves e limitações – as ignomínias, crueldades e infâmias existentes nos séculos XX e XXI –, mas ele chegará ao destino para levar a mensagem de cura do espírito.
A primeira história ou fato a discutir entre os inúmeros passageiros que integram esse veículo, no Brasil, é o “pedido de desculpas” da ministra do STM, durante os 50 anos da morte do jornalista Vladimir Herzog, assassinado durante a ditadura brasileira de 64. Estamos falando da ministra Elizabeth Rocha, presidente do STM, quando disse: “Peço perdão, falando em meu nome, na condição de Presidente do Superior Tribunal Militar, a todas as vítimas de graves violações de direitos humanos, à sociedade civil e à História do país. Trata-se de gesto eticamente republicano e constitucionalmente afinado com a memória, a verdade e a não-repetição de violências, certa de que a dor transpassa o coletivo e que, muitos, como eu, têm registros de lágrimas derramadas por familiares martirizados pela ditadura".
Malcontente com esse pronunciamento, outro passageiro – o tenente-brigadeiro do ar da Força Aérea Brasileira Carlos Augusto Amaral Oliveira (FAB), colega da ministra na Corte de Justiça Militar – declarou em outra sessão, que a presidente do STM não poderia falar em nome da Corte militar e dos integrantes da mesma. A ministra deveria “estudar um pouco mais de história” para “opinar sobre a situação no período a que ela se referiu e sobre as pessoas a quem pediu perdão”. Registre-se que a presidente do STM é casada com um general de divisão e o irmão, militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) foi morto e torturado pelos militares.
Ao ilustre brigadeiro, insatisfeito ou contrariado com o pedido de perdão, seria relevante acentuar que a história e o historiador têm o dever de esclarecer não apenas as dúvidas, mas, acima de tudo, as iniquidades praticadas pelos homens no período mais letal da nossa história, incluindo os gritos de desespero, luta, tortura e agonia. Herzog e outros presos torturados talvez tenham repetido a frase: “Pai, nas tuas mãos entrego a minha vida”.
O segundo fato é a morte de Dick Cheney, aos 84 anos, o republicano que serviu aos piores governos dos EUA a começar pelo de Richard Nixon. Após o 11 de setembro de 2001, ele ganhou o epíteto de “arquiteto da guerra ao terror”. A alcunha surgiu após Cheney comandar a invasão ao Iraque sob o equivocado pretexto de destruição de armas em massa, em poder de Saddam Hussein. Foi a era dos ganhos financeiros de empreiteiras e multinacionais, nomeadamente, da indústria de armas. Dessa desordem ou caos, abrolhou a Al-Quaeda e outros grupos terroristas responsáveis pelo drama migratório que reacendeu a xenofobia e implicou o crescimento da extrema-direita na Europa, nos EUA e no Mundo.
O terceiro e último fato é composto das guerras atiladas e acirradas em Israel e na Ucrânia. Não apenas a guerra que deixou um tapete sangrento na Faixa de Gaza e crianças entresilhadas com as mãos distendidas. Precisamos lembrar a guerra no Rio de Janeiro, onde o carpete, mesmo numa dimensão menor, é composto por cadáveres de soldados e cabos do crime organizado. Como se vê, o ônibus para Clapham possui o que há de melhor e de pior no planeta. Queira ou não, estaremos sempre nesse veículo em todos os dias da nossa existência.
*Dayse de Vasconcelos Mayer, ex-docente da Faculdade de Direito de Lisboa, constitucionalista, doutora em ciências jurídico-políticas