Desenho de distrito em modelos de voto
É recorrente a escapatória dos políticos de tentar imputar ao modelo proporcional de voto a responsabilidade pelos dramas sociais e políticos......
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Em face da grande repercussão das vitórias democratas nos estados de Virginia, New Jersey e, principalmente, no município de Nova York, no pleito fora do ciclo eleitoral (off-year) desta semana, nos Estados Unidos, passou meio que despercebida a aprovação, por referendo, de novo redesenho do mapa eleitoral dos distritos do Estado da Califórnia.
A eleição para deputado nos Estados Unidos, como se sabe, é regida pelo sistema majoritário-distrital. Neste modelo - mais conhecido no Brasil como distrital puro - cada partido concorre com um candidato no distrito e o mais votado por maioria simples (first past the post) é eleito. A Câmara dos Deputados americana é composta por 435 parlamentares eleitos em igual número de distritos, com cada distrito comportando aproximadamente 780 mil habitantes, em média.
Como sói acontecer em todos os países que adotam o sistema majoritário-distrital, é contínua a briga entre partidos políticos pelo desenho geográfico do mapa distrital (distritalização). Cada partido busca obter vantagens para suas hostes, em detrimento dos adversários, mediante tentativas de alteração das linhas divisórias que separam áreas em mapas e registros territoriais de distritos.
A desditosa prática ficou conhecida na literatura especializada como Gerrymandering, desde que o governador do Estado de Massachusetts, Elbridge Gerry, em 1812, sancionou um mapa eleitoral do estado, aprovado na Câmara Legislativa, cujo contorno favorecia eleitoralmente seu próprio partido. A esquisita configuração do mapa se assemelhava a uma salamandra, gerando daí a denominação que ficou famosa, resultante da justaposição de duas palavras: Gerry salamander = Gerrymander.
Enfim, o Gerrymandering é a tentativa de manipular resultados eleitorais através de redesenhos de distritalização, normalmente pela via da concentração de votos de oponentes em poucos distritos (packing) ou dispersando-os em muitos (cracking).
No caso atual da California, o Partido Democrata, que encabeçou a proposta que lhe beneficiava no redesenho distrital, espera aumentar sua bancada nas Câmara dos Representantes em 5 deputados. Trata-se de contraofensiva do partido às iniciativas de distritalização perpetradas pelos republicanos em alguns estados, como no Texas, por exemplo, com claros indícios de auto favorecimento.
Todo este exórdio vem a propósito de nova investida do estamento político do Brasil de substituir o atual modelo proporcional de voto pelo sistema eleitoral distrital, espelhado na vertente mista da Alemanha.
Nessa assentada, almeja-se aproveitar um texto com a proposta do modelo apresentado no Senado em 2017, pelo então senador José Serra (PL 9.212/17), ressuscitando-o agora na Câmara com o apoio do presidente da Casa, deputado Hugo Motta, que promete pautá-lo até o final deste ano.
O modelo distrital misto conjuga os sistemas majoritário e proporcional de representação, em que o eleitor vota duas vezes: uma, no candidato de sua escolha no distrito, pelo sistema majoritário, e outra, no partido de sua preferência, pelo sistema proporcional de lista fechada ou pré-ordenada.
Em termos do processo de desenho de distritos, para citar apenas uma das grandes complexidades do modelo para o Brasil, como lidar com o Gerrymandering tupiniquim? Mesmo designando-se a Justiça Eleitoral, de incontestável imparcialidade, para configurar o traçado distrital, ao fim e ao cabo o esboço da proposta passará pelo crivo do legislativo, onde tudo pode ocorrer.
Mas as complicações do sistema distrital vão mais além. Por exemplo, de acordo com o modelo Serra, Pernambuco seria dividido em 12 distritos de aproximadamente 596 mil eleitores para deputado federal e em 24 distritos de cerca de 298 mil eleitores para deputado estadual (deixando de lado a não menos complexa distritalização para vereadores).
Tudo bem. Mas como ficarão os contornos dos distritos em uma eleição simultânea para os dois cargos? Os distritos do estado estarão contidos nos limites dos distritos federais? Se sim, a capital, Recife, pelo seu tamanho, comportaria dois distritos para federal e quatro para estadual. Mas, in casu, o eleitor não pertenceria, a um só tempo, a 2 distritos? E somem-se inúmeras dificuldades ao caleidoscópio de questões.
Já se incorporou à paisagem nacional a recorrente escapatória da classe política de tentar imputar ao modelo proporcional de voto a responsabilidade pelos angustiantes dramas socioeconômicos e políticos do país, buscando substituí-lo, como panaceia, por qualquer outro modelo, mesmo os de baixíssima inteligibilidade, como o distrital misto.
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Maurício Costa Romão, Ph.D. em economia pela Universidade de Illinois, nos Estados Unidos. mauricio-romao@uol.com.br