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Ulysses Paulino de Albuquerque: COP30, povos indígenas e o valor do diálogo entre saberes

Quando povos indígenas descrevem o comportamento de uma espécie por meio de narrativas simbólicas, não estão praticando uma observação ingênua

Por Ulysses Paulino de Albuquerque Publicado em 10/11/2025 às 6:16

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Vivemos um tempo em que os desafios globais (ambientais, sociais e éticos) exigem mais do que soluções técnicas, elas pedem diálogo. Cada vez mais, cientistas e filósofos reconhecem que enfrentar a complexidade do mundo contemporâneo depende de um esforço coletivo de escuta entre diferentes formas de conhecimento, e não apenas do saber científico, é a chamada transdisciplinaridade.

Em um texto recente na Revista Questão de Ciência (14 de outubro de 2025), o jornalista Carlos Orsi trouxe esse tema à tona, tendo a COP 30 como cenário. Ele expressou a preocupação de como garantir que o diálogo entre a ciência e os chamados conhecimentos tradicionais, especialmente de povos indígenas, não acabe comprometendo os critérios de rigor científico. A questão central era se podemos considerar o “conhecimento tradicional” uma forma válida de conhecimento. Entendo essa intenção e compartilho parte dessa defesa da ciência. Afinal, como ele observa, há defensores da chamada descolonização da ciência que podem adotar posições tão radicais que flertam com o negacionismo científico. Mas o texto ecoa um tipo de pensamento exclusivista, que ignora o sentido mais profundo do conceito de troca de saberes.

Quando povos indígenas descrevem o comportamento de uma espécie por meio de narrativas simbólicas, ou planejam o plantio de acordo com ciclos da natureza, não estão praticando uma observação ingênua. Estão expressando uma ecologia de saberes na qual natureza, humanidade e espiritualidade não são domínios separados. Esses conhecimentos orientam práticas cotidianas e modos de vida; não competem com a ciência (e não deveriam), apenas operam a partir de outra lógica, com finalidades sociais e ecológicas próprias.

O risco desse tipo de crítica é confundir critérios de validação científica com critérios de legitimidade e justiça epistemológica. Deixa eu me explicar. O primeiro é indispensável dentro do campo científico, e precisa permanecer assim. O segundo é mais amplo. Justiça epistêmica significa reconhecer que diferentes formas de conhecimento podem coexistir e dialogar, contribuindo para interpretar e enfrentar problemas reais, sem que isso implique relativizar a ciência.

Há exemplos concretos desse encontro. A descoberta do Tapirus kabomani (a “anta-preta-pequena” da Amazônia), em pesquisa liderada por Mário Cozzuol (professor da UFMG), em 2013, confirmou algo que populações indígenas já reconheciam há gerações, de que havia mais de um tipo de anta na região. Há décadas também que a comunidade científica reconhece esses saberes como importantes na descoberta de novos medicamentos a partir de práticas tradicionais de cura com plantas medicinais. Esses casos ilustram que escutar distintos saberes pode ampliar o campo de observação científica, não o substituir.

Mas insisto que o valor desses saberes vai muito além de sua utilidade para a ciência. Sem essa consciência, corremos o risco de tentar validá-los segundo uma lógica de conhecimento que lhes é alheia.
O conhecimento tradicional não precisa replicar o método científico para ser valioso no contexto em que é produzido. Seu critério central não é produzir explicações universalistas, mas orientar a vida, a relação com o território e a continuidade comunitária. Em vez de hierarquizar, a chave é identificar o que cada sistema de conhecimento oferece diante das crises socioambientais que enfrentamos.

Tratar a ciência como o único regime legítimo de conhecimento seria, paradoxalmente, incorrer no mesmo dogmatismo epistemológico que ela própria combate. O problema não está em defender o método científico (com isso, estou plenamente de acordo); o problema é reduzir a ideia de conhecimento ao que cabe nos limites e linguagens da ciência moderna ocidental. Até porque a ciência busca nos oferecer as melhores respostas para navegar com segurança nesse mundo, e faz isso muito bem, mas ela não deve operar isolada das realidades sociais.

A ciência é uma prática social e histórica, moldada por contextos culturais e institucionais. O que os movimentos decoloniais e ambientais propõem, em sua vertente mais equilibrada, não é substituir a ciência, mas ampliar o campo de escuta e reconhecer outros modos de conhecer, que produzem sentido, orientação e práticas sustentáveis. É nesse encontro entre o rigor científico e a sabedoria ancestral que talvez resida uma das chaves para a construção de um futuro verdadeiramente comum.

Na COP 30, o diálogo entre ciência e povos tradicionais precisa ser horizontalizado, pautado no respeito, no entendimento e no reconhecimento da experiência do outro, de sua conexão com o território e de seus modos de vida. Isso não enfraquece a ciência ou a inferioriza; isso fortalece nossa capacidade coletiva de responder a um planeta em transformação.

Ulysses Paulino de Albuquerque é professor titular do Centro de Biociências da UFPE e Membro da Academia Pernambucana de Ciências

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