Artigo | Notícia

Roberto Pereira: Casos e causos em movimento (6)

Durante uma conferência, meu pai, Nilo Pereira, notou risos discretos na plateia. Ao virar a página, encontrou no verso um bilhete meu

Por ROBERTO PEREIRA Publicado em 10/11/2025 às 6:03

Clique aqui e escute a matéria

POETA JOÃO CABRAL — Aos setenta anos, o poeta-embaixador João Cabral de Melo Neto, durante uma coletiva de imprensa, foi indagado sobre como preenchia as fichas de recepção nos hotéis: se como poeta ou escritor. Ele respondeu:

“Sempre usei nas fichas a profissão de diplomata, pois ser escritor no Brasil não é profissão.”

Na ocasião, recordou o episódio vivido por Mário de Andrade, escritor e professor de música, que, numa cidade do interior paulista, fora tratado com grosseria ao se apresentar como escritor

Coisas do passado! Um viva aos escritores — exaltamos todos por dever de justiça.

GRAMÁTICA DO AFETO — Durante uma conferência no Gabinete Português de Leitura, meu pai, Nilo Pereira, notou risos discretos na plateia. Ao virar a página, encontrou no verso um bilhete meu:

Papai, me acorde amanhã às cinco horas. Beijos do seu filho, Roberto.

Ele sorriu e, mostrando o papel à plateia, comentou:

“Vejam o que o sono faz!”

O riso se espalhou, leve e generoso.

Mais tarde, ainda nos meus verdes anos, criança bem criança, aprendi com ele que o correto seria acorde-me — mas aprendi algo maior: que, diante do carinho entre pai e filho, até a língua portuguesa se inclina em ternura.

POETA AUDÁLIO ALVES — O poeta pesqueirense Audálio Alves, um dos maiores de Pernambuco, foi também um dos meus grandes amigos.

Certa vez, viajamos juntos ao Rio de Janeiro e nos hospedamos no mesmo hotel, o Flórida, no Flamengo — conhecido como “o hotel dos pernambucanos”, por acolher conterrâneos ilustres como Mauro Mota.

De manhã cedo, acordei com Audálio jogando talco em mim — segundo ele, para que eu me levantasse bem cheiroso. Alergia à parte, compreendi o gesto de carinho do autor de Canto agrário.

Depois do banho, percebi que havia esquecido meu relógio no banheiro. Procuramos em vão, até que eu disse:

“Audálio, vamos à reunião. Prefiro perder o relógio do que perder a hora.” Risos.

No caminho, ainda pelo corredor, perguntei de súbito:

“Audálio, que horas são?”

Ele arregaçou as mangas do paletó e, para nossa surpresa, estava com dois relógios — um deles, o meu. Caímos em gargalhadas!

ALCEU AMOROSO LIMA — Dom Marcos Barbosa, beneditino e poeta, ao falar no velório de Alceu Amoroso Lima — o célebre Tristão de Athayde —, encerrou sua homenagem com uma frase memorável:

“Alceu, ao céu.”

O SAPATO E A FESTA DA MOCIDADE — Sempre vivi intensamente as alegrias da Festa da Mocidade, que hoje habita o imaginário nostálgico de tantos da minha geração.

Certa noite, eu conversava animado com um grupo de meninas da minha idade, iniciando uma paquera — como se dizia então —, quando o som ecoou alto pelos alto-falantes:

“Atenção! Atenção! Roberto Pereira, o seu pai está em casa esperando pelo sapato, pois precisa sair!”
Meu pai, na varanda de casa, ouviu claramente o anúncio e logo pensou:

“Mais uma das peraltices de Geraldo Pereira, que adora essas brincadeiras em família.”

Dito e feito. Ao chegar, encontrei meu irmão rindo às gargalhadas. E eu? Com cara de tacho, passei o resto da noite tentando disfarçar, ainda que brilhando nas alegrias reinantes.

PAULO MALTA — O grande Paulo Malta, delegado, mas sobretudo jornalista de coluna diária, certa vez protagonizou uma cena inesquecível. Era a última noite do ano, e ele voltava para casa, na Rua do Sossego, amparado pela esposa e pelo também jornalista José Adalberto Ribeiro — o whisky falava mais alto.

Ao avistar meu pai e nossa família, que também celebravam a chegada do novo ano, exclamou:

“Meu Deus, não queria que Nilo me visse assim!”

Mas Nilo, com seu habitual espírito acolhedor, o chamou para juntar-se a nós. Convite feito, convite aceito. Cambaleante, Malta ainda encontrou forças e equilíbrio para brindar à vida — bela, como disse Machado de Assis no ocaso da sua.

Roberto Pereira é membro efetivo e benemérito do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, do Instituto Histórico, Arqueológico e Geográfico de Goiana, da Academia de Artes e Letras de Goiana, da Academia Brasileira de Eventos e Turismo e da Academia Pernambucana de Letras.

Compartilhe

Tags