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Lugar de "cala-te!"

Há, aqui, um risco iminente: o da produção de guetos culturais, de searas intransponíveis que impedirão, à la limite, o diálogo intercultura

Por FLÁVIO BRAYNER Publicado em 04/11/2025 às 0:00 | Atualizado em 04/11/2025 às 11:17

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Com o sugestivo (e provocativo!) título "Lugar de fala é lugar onde se cala?", publicado recentemente na plataforma Sler (Porto Alegre), meu velho e querido amigo Jorge Falcão, professor da UFRN, relata um fato inquietante: duas de suas orientandas de Doutorado estão trabalhando sobre o tema das mulheres negras, pobres e trabalhadoras e, diante da "especificidade" da temática e do fato de que Jorge não é nem pobre, nem negro, nem mulher..., levantou-se, no grupo, uma certa desconfiança em sua, não direi competência intelectual, mas na "vivência identitária" necessária para tratá-la! O que subjaz a essa desconfiança, claro, é a ideia de que só, e somente só, negros podem falar de negros, mulheres de mulheres, pobres de pobres... E qualquer ingerência indevida nesse "lugar de fala" será imediatamente labelizado como "colonialidade", "dominação cultural eurocêntrica", "imperialismo monoepistêmico", ou simplesmente como "politicamente incorreto". O que está em jogo é uma determinada ideia que fizemos, e fazemos, de "universalismo". Posso esclarecer?

Acho que aprendi lendo Walter Benjamin (e os franfurtianos daquela primeira geração) que não devemos acreditar nas promessas que nos foram feitas pela Modernidade, promessas de realização da utopia, da liberdade, da autoconsciência, do fim da dominação e da exploração, enfim, da "humanização" do homem. "Todo ato da cultura é um ato da barbárie!", dizia Benjamin, num conhecido aforisma. Isso significa que aquela ideia de um pertencimento, pela RAZÃO, a um comunidade chamada de HUMANIDADE, gerou desastrosas formas de extermínio, colonização, aniquilação do outro "diferente": basta pensar nas formas da inefável violência - em nome da "civilização", naquele Congo de Leopoldo III!- retratadas por Conrad em "No coração das trevas".

Aprendida essa lição benjaminiana, não posso acreditar que as formas do identitarismo cultural, tão em voga, possam produzir patamares de libertação mais elevados ou graus de autoconsciência superiores e, assim, livrar seus militantes das formas insidiosas de opressão e de violência estrutural e simbólica: toda política identitária é excludente (numa época em que são os próprios excluídos que lutam por políticas inclusivas!), por que ela precisa produzir um NÓS agregador e um ELES que precisam ser combatidos em nome da afirmação de uma determinada subjetividade coletiva: todo processo de subjetivação identitária precisa fabricar seu inimigo, imaginário ou real.

É aqui onde a crítica ao "universalismo" produzido pelo Iluminismo europeu atinge seu paroxismo. E isso trará consequências que não são apenas a autoafirmação e a visibilidade de grupos historicamente oprimidos. Um dialeta - desses que pululam em nossas Humanidades- diria que "toda liberdade traz em seu seio o germe de sua própria destruição".

Sugiro, na continuidade desse artigo, uma rápida digressão.

Quando Arthur de Gobineau (1816-1882), que serviu aqui no corpo diplomático francês no Segundo Império, publicou o seu "Estudo sobre as desigualdades de raça", uma de suas teses centrais, em relação aos negros, era de que estes eram incapazes cognitivamente de ultrapassar o particular das coisas concretas para a abstração do universal (Matemática, Filosofia, Ciência...), e apresentava a "prova": "Apontem-me onde está o Charles Baudelaire africano!". Ora, a escola republicana clássica queria exatamente isso: que seus egressos saíssem de seu paroquialismo cultural, do localismo de suas crenças, religiosas ou outras, para alcançar níveis de universalidade da "razão" que os tornariam mais "humanos", participantes de uma "raça" única! Essa ideia, como sugerimos, produziu as formas mais violentas de imperialismo, colonialismo, extermínio, etnocídio..., mas foram essas ideias que permitiram a existência de coisas como os Direitos Universais, Direitos Humanos e até mesmo a de "cidadania planetária", esses mesmos Direitos Humanos que, nesse momento estão sendo clamados pelos negros, pobres, trabalhadores e favelados massacrados pelo governador Cláudio Castro!

Foi exatamente porque os negros eram tidos como cognitivamente limitados que eles não tiveram direito à escola republicana no Brasil: era inútil, improdutivo e perdulário lhes oferecer republicanismo escolar, já que eles nunca alcançariam os patamares da universalidade da abstração: que sobrevivessem nos trabalhos subalternos, continuidade da escravidão! Aliás, muitos de nossos mais convictos abolicionistas acreditavam na tese de Gobineau...

Ora, quando aquelas doutorandas de Jorge Falcão fazem muxoxo para o fato de ele, como orientador, não dispor dos predicados identitários para dirigir aquelas teses "negras, femininas e trabalhadoras", elas estão apenas invertendo a tese de Gobineau, mas mantendo os mesmos termos da equação: se nosso diplomata achava que o particularismo aprisionava e o universalismo libertava (posição iluminista e republicana), nossas estudantes acham o contrário: o particularismo salva. Há, aqui, um risco iminente: o da produção de guetos culturais, de searas intransponíveis que impedirão, à la limite, o diálogo intercultural, o distanciamento crítico, a antropologia interior que nos permite "ver" de quais camadas subjetivas nossa cultura nos fez e que, para isso, precisamos de um OUTRO que não comungue de nossa identidade primária.

Aliás, a crítica do universalismo da "hegemonia epistêmica europeia", faz uso da principal ferramenta produzida por aquela cultura "hegemônica": a CONSCIÊNCIA CRÍTICA! Ora, ora...

PS. Boa sorte Jorge!

Flávio Brayner, professor Emérito da UFPE

 

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