A educação pela bola
A história registra que a prática do futebol estava restrita à elite branca. Fiel às origens, nosso futebol, racista e excludente...
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No título, a bola é uma figura de linguagem: a parte pelo todo. O todo é o futebol, um fenômeno sociocultural que mobiliza mais de quatro bilhões de pessoas no mundo. Nasceu eurocêntrico, branco, elitista e com uma irresistível vocação global. Seu berço, a Inglaterra, era um vasto império que abraçava o nascer e o pôr-do-sol.
Em dezembro de 1863, foram codificadas 14 regras (atualmente 17), um sistema normativo, conciso, universal, bastante estável que assegurava a ordem e o equilíbrio da competição, marcada, entre outros fatores, pela força física e atritos corporais.
Rapidamente, o futebol ganhou o mundo. No Brasil, predomina a versão de que foi Charles Miller, filho de pai escocês e mãe brasileira, educado na Inglaterra, o introdutor do futebol no nosso país no dia 14 de abril de 1895. Independente das controvérsias, ele fez história.
Nos primeiros capítulos, a história registra que a prática do futebol estava restrita à elite branca. Fiel às origens, nosso futebol, racista e excludente, foi se rendendo aos encantos das várzeas suburbanas, à classe operária emergente e à chegada dos imigrantes. Ainda hoje, porém, escutamos uivos racistas pelo mundo afora, a voz de condenáveis preconceitos.
O fato é que os subúrbios e os campos de várzea em espaços, mais tarde, ocupados pela urbanização desenfreada, tornaram-se uma incubadora de talentos, pobres, pardos e pretos. Dela emergiram jogadores fantásticos. Na década de 20, um mulato de olhos verdes e cabelo espichado, décadas de 20/30, Arthur Friedenreich (1892-1969), pai brasileiro descendente de alemão e mãe, professora das primeiras letras em escolas públicas, encantou o Brasil e o mundo com uma profusão de gols, entre eles, o que deu à nossa seleção o primeiro título Sul-americano (1919).
Na década de 50, o gênio adolescente, preto, pobre, chamado Pelé, melhor dizendo, o Senhor Futebol, e uma esplendorosa geração fizeram do Brasil a maior potência futebolística do planeta.
Entre eles e a bola, a fascinante esfera, havia uma simbiose perfeita. O talento parecia um dote de nascença. Mera impressão. Para com ela aprender, é preciso “frequentá-la”, a exemplo da “pedra”, ensina a primeira estrofe do imortal poema “Educação pela Pedra” de autoria do notável poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto que, por coincidência, foi campeão juvenil pelo Santa Cruz, em 1935, com 15 anos de idade. Ele “frequentou” a bola.
No mundo das competições de alto rendimento, se impõe, cada vez mais, o valor da educação pela bola a partir de uma sólida formação nas categorias de base.
Neste sentido, o fracasso da seleção brasileira na Copa do Mundo Sub-20 serve de alerta e desafio aos dirigentes da CBF e aos gestores dos clubes brasileiros. O campeão foi a seleção do Marrocos que venceu a final com a Argentina com dois gols do atacante Yassir Zabiri, jogador do Famalicão, formado na Academia de Futebol Mohammed VI.
Isto mesmo, uma Academia de Futebol “produzindo” atletas e vencendo competições internacionais de forma inédita. Investir no futuro é um desafio estratégico que os gestores do nosso futebol não parecem dispostos a enfrentar. Um dos argumentos é que não é possível manter estes atletas diante do avassalador poder de compra das multinacionais do futebol.
Ora, são estas dificuldades que justificam a prioridade do trabalho de base. No processo de formação, quanto mais revelações de bons jogadores, melhor. Atendem necessidades mais urgentes do clube; reduz os custos das equipes principais e, não raro, descobrem o que o mercado chama de “joias”, adquiridas a peso de milhões de dólares ou euros. As “joias” não precisam ter a visibilidade de um Estevão ou de um Endrick. Recentemente o Bahia (integrante da rede global controlada pelo City Football Group) contratou do Sfera F.C., clube formador, o adolescente Dieguinho (14 anos) em acordo que pode chagar a um milhão de euros, negociação mais cara do Brasil envolvendo um atleta de com menos de 16 anos.
É um caminho sem volta. Ou se investe forte na formação e capacitação dos atletas ou a estreita visão do curto prazo condenará muitos clubes à irrelevância e à tragédia da extinção.
Nos anos 60, ouvi uma preleção de José Alexandre Borges (1933-1972), respeitado professor de educação física, técnico de futebol com grande experiência na formação de base cujas palavras iniciais, jamais esqueci: “Rapazes, futebol se joga com a cabeça, corre com os pulmões e chuta com os pés”.
Ele anteviu a integração das dimensões do humano ao jogo de futebol. Antecipou métodos que fortaleciam os fundamentos do esporte, aprimorando habilidades técnicas (o passe, o chute, o cabeceio, o drible) sem sacrificar a criatividade e a improvisação adquiridas na lúdica “formação silvestre”, tais como, a caneta, o chapéu, a lambreta e tantas outras magias brasileiras.
Desenvolvia, também, as principais valências físicas do futebol (resistência, força, velocidade, potência, equilíbrio, coordenação, flexibilidade); simulava situações de jogo e ensaiava jogadas. Sensível à situação socioeconômica dos seus comandados, estimulava a educação formal sem perder de vista a influência dos aspectos psicossociais no desempenho individual e coletivo de suas equipes. Com intenso brilho e curta duração de um cometa, deixou um legado de grandes jogadores. O que fazia de forma incipiente depende, hoje, de sofisticadas equipes multidisciplinares. Jogar futebol, paixão mobilizadora do maior espetáculo da terra, requer uma relação educada e amorável com a bola.
A propósito, Tostão, síntese genial de craque e pensador, assim celebrou o “fascínio pela bola” (artigo publicado na FSP, edição de 25/10/25): “Antes de gostar de futebol, a criança fica fascinada pela bola, pelo formato redondo [...] A forma esférica sempre fascinou as pessoas e está presente em todos os lugares, na natureza e na criatividade humana, como na obra do genial Leonardo da Vinci”.
Gustavo Krause, ex-governador de Pernambuco