Carlos Sant’Anna: Os Intocáveis
O STF e alguns ministros têm protagonizado decisões que parecem configurar tentativas de blindar os membros da Corte contra responsabilizações
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No cinema, Os Intocáveis são policiais que investigam e enfrentam quem não cumpre a lei. No Brasil real, o roteiro se inverteu: aqui, os intocáveis são justamente aqueles que deveriam ser fiscalizados pelo Estado. Magistrados são servidores públicos, sujeitos à Constituição e à Lei Orgânica da Magistratura, deveriam responder pelos seus atos. Na prática, contudo, parece que uma espécie de Magistrado criou ao redor de si uma redoma de imunidade funcional que nem os personagens de Hollywood ousariam sonhar.
Não se trata de negar a importância dos Ministros do STF como guardião da Constituição. O problema nasce quando quem vigia o cumprimento da lei passa a vigiar seu cumprimento apenas aos outros, e isso ocorre quando o tribunal que deveria limitar o poder, passa a exercê-lo sem limites. E ainda mais, quando qualquer tentativa de crítica institucional ou fiscalização é repelida como afronta à democracia. É o Estado de Direito convertido em direito de Estado.
O STF e alguns de seus ministros têm protagonizado decisões que, parecem configurar tentativas de blindar os membros da Corte contra responsabilizações ou críticas incômodas.
Há exemplos eloquentes. Quando auditores da Receita Federal iniciaram fiscalização sobre movimentações financeiras do ministro Gilmar Mendes, o STF reagiu, não para garantir a legalidade do procedimento, mas para barrá-lo. No episódio da revista Crusoé, que publicou matéria mencionando o Min. Dias Toffoli, a Corte determinou censura e retirou o conteúdo de circulação, em pleno século XXI, exercendo o controle prévio da imprensa. A Lei Magnitsky, que tem como objetivo sancionar autoridades envolvidas em corrupção e violações de direitos humanos, simplesmente não se discute a violação pela autoridade, mas que a sanção não pode alcançá-los.
O auge dessa arquitetura de autoproteção talvez seja o Inquérito das Fake News. Criado de ofício, sem provocação do Ministério Público, com o STF atuando simultaneamente como vítima, investigador e julgador. Ampliou-se a competência do Tribunal para além dos limites constitucionais, criando um processo de exceção em nome do Estado de Direito. Mas que instituição é essa que precisa se proteger de críticas punindo quem a critica?
Achou Pouco? alguns ministros passaram a defender que a Lei do Impeachment, prevista no art. 52 da Constituição, só poderia ser aplicada aos membros do Supremo mediante denúncia exclusiva do Procurador-Geral da República. Nenhum cidadão, senador ou partido poderia provocar o Senado diretamente. A responsabilização dependeria da vontade de um único agente público, nomeado politicamente e frequentemente alinhado à própria Corte. É a hermenêutica da blindagem: interpreta-se a lei para blindar, não para limitar o poder.
Quando decisões judiciais delimitam o poder de investigação ou de imprensa, quando comunicações do serviço público são escondidas, quando investigações potenciais são abortadas ou declaradas improcedentes sem análise transparente, há um problema grave: está sendo corroida a confiança pública no Poder Judiciário.
A contradição é brutal, qualquer servidor público deve e pode responder por seus atos. Qualquer juiz de primeiro grau está sujeito ao CNJ. Qualquer parlamentar pode ser cassado por seus pares. Mas os ministros do STF, no topo da República, não têm a quem responder. O tribunal tornou-se simultaneamente autor da regra, intérprete da regra e beneficiário da regra.
Não se trata de atacar instituições, mas de lembrar que nenhuma democracia sobrevive quando aqueles que julgam os outros se recusam serem julgados. A função contra-majoritária do Supremo não pode se converter em função autorreferente. A toga não é escudo, nem a Corte é fortaleza.
Não se pede um STF submisso à opinião pública, mas um STF submetido à Constituição. Que ministros respondam por seus atos como qualquer servidor público. Que a lei, toda ela, alcance também aqueles que a interpretam. Justiça exige igualdade, não blindagem.
Carlos Sant’Anna, Advogado e Presidente da Comissão de Assuntos Tributários da OAB/PE