Artigo | Notícia

Entre o direito e a invasão: os limites da luta social

Invadir propriedades privadas não é política habitacional — é perpetuar um ciclo de ilegalidade que prejudica o país......................

Por EDUARDO GOMES DE FIGUEIREDO Publicado em 14/10/2025 às 0:00 | Atualizado em 14/10/2025 às 13:15

Clique aqui e escute a matéria

A luta por direitos sociais no Brasil vive um paradoxo perigoso. A nobre causa da justiça social tem sido manchada por métodos que, em vez de fortalecer a democracia, corroem seus alicerces. Não se constrói uma sociedade mais justa sobre os escombros da propriedade alheia, nem se alcança o direito à moradia pela negação de outros direitos fundamentais.

O país enfrenta crises habitacionais e agrárias de grande escala. O déficit de moradias, a concentração fundiária e a desigualdade social permanecem como feridas abertas. Mas a gravidade desses problemas não autoriza a violação da ordem jurídica, tampouco a supressão de direitos de propriedade legítimos. Invadir propriedades privadas não é política habitacional — é perpetuar um ciclo de ilegalidade que prejudica o país.

Ocupar áreas produtivas não significa promover reforma agrária; significa sabotar a produção de alimentos e gerar insegurança jurídica, afastando investimentos e desenvolvimento. Há uma distância profunda entre reivindicar direitos e tomá-los à força. As Comissões de Soluções Fundiárias, criadas pelo Conselho Nacional de Justiça, representam um avanço ao propor o diálogo. Na prática, porém, observa-se um fenômeno preocupante: processos de reintegração de posse ficam represados, decisões judiciais deixam de ser cumpridas e proprietários tornam-se reféns de uma Justiça que não se efetiva.

Esse represamento não traz solução — funciona como uma bomba-relógio. Cada decisão descumprida alimenta a sensação de impunidade entre invasores e de revolta entre proprietários, elevando o risco de confrontos violentos. A omissão do Estado em formular políticas públicas eficazes de habitação e reforma agrária não autoriza a transferência dessa responsabilidade ao particular. O proprietário não pode responder pelo fracasso do governo em cumprir suas obrigações constitucionais. Não cabe a ele financiar, sob coação, políticas sociais que são dever do poder público.

Essa inversão de responsabilidades remete a capítulos sombrios da história recente, como o confisco das poupanças nos anos 1990. A injustiça não se corrige com outra injustiça. O Direito não se sustenta sobre o arbítrio. A justiça social não nasce da retenção forçada do patrimônio alheio. A transformação efetiva exige que o Estado cumpra seu papel: desapropriando áreas improdutivas mediante justa indenização, construindo habitações populares e implementando programas sérios de reforma agrária, custeados com recursos públicos. O caminho da legalidade pode parecer mais lento, mas é o único que sustenta a democracia.

Quando movimentos sociais legitimam a invasão, quando comissões adiam decisões e quando o Judiciário deixa de executar suas próprias determinações, todos perdem. Perde o Estado de Direito, perde o proprietário, perde o agricultor que permanece sem título, crédito ou futuro. Perde a sociedade, que assiste à erosão das instituições e ao avanço dos conflitos. O Executivo precisa assumir suas responsabilidades. O Judiciário deve fazer valer suas decisões, sem se curvar a pressões políticas ou corporativas.

No confronto entre o direito e a invasão, entre a lei e o arbítrio, o único caminho viável é o respeito às instituições democráticas e à ordem jurídica. Sem esse compromisso, a promessa de justiça social se esvazia, e o que resta é desordem, insegurança e o enfraquecimento das bases da própria democracia. Direitos não se conquistam violando outros direitos. Justiça social não se ergue sobre soluções ilegais. O fim, por mais nobre que pareça, não legitima meios ilegítimos. As Comissões de Soluções Fundiárias não podem se transformar em instrumento de perpetuação de ocupações irregulares.

Eduardo Gomes de Figueiredo,  advogado,  especializado em gestão e políticas públicas

 

Compartilhe

Tags